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  • CELEBRAR OS JUBILEUS: atualizando a missão e renovando a esperança
    v. 78 n. 02 (2024)

    Nestas duas décadas que nos conduzem pelo século XXI, a humanidade tem testemunhado grandes avanços. Embora enfrentemos fragilidades e desafios, é inegável que, em diversas áreas, conseguimos demonstrar o melhor de nossas capacidades em prol do bem comum, do cuidado com o próximo, e da melhoria das condições de vida no planeta. É inata ao ser humano a capacidade de transformar a realidade. Resta saber se estamos conseguindo direcionar esta capacidade na construção de um futuro mais promissor para todos.

    Na verdade, a realidade nos mostra que vivemos um momento de profundas transformações. Junto ao trigo saudável e pleno de possibilidades, também viceja o joio vigoroso. O cenário atual, neste início de século, nos deixa, no mínimo, apreensivos. O clima primaveril que aos poucos se espalha no ar, nos inspira a iniciar este editorial com palavras de otimismo, esperança e renovação. No entanto, não podemos ignorar que, em muitos aspectos, a dura realidade se impõe, nua e crua.

    Recentes acontecimentos têm acendido o alerta de que a experiência humana na terra não está avançando como deveria. Alguns eventos estão se dando de forma tão rápida e dramática, trazendo no seu bojo mutações tão inovadoras quanto assustadoras, e nem temos ainda condições de nomeá-los. Nem mesmo fazemos ideia dos impactos que tais inovações terão sobre a vida do ser humano e de toda a criação num futuro não muito distante. Não se trata de colocar todas estas transformações, eventos e “novidades” dentro de um esquema e rotulá-las como absolutamente negativas e ameaçadoras, como se o apocalipse estivesse às portas. Mas uma análise um pouco mais aprofundada revela que tais escolhas podem ter consequências catastróficas.

    No contexto global, a proliferação de conflitos e guerras, para além do horror e do sofrimento que provocam, estão levando a humanidade à beira de uma conflagração mundial, com o risco de um confronto nuclear.

    O uso da Inteligência Artificial (IA) aos poucos torna-se onipresente em nosso cotidiano. Seus avanços são, ao mesmo tempo, intrigantes e promissores. Sem ignorar todos os aspectos positivos que traz consigo, o recurso à IA também gera insegurança e temor. O que será das funções e dos empregos que, em grande escala, já estão sendo substituídos pelas máquinas? E quanto ao uso desenfreado da tecnologia para formar (ou deformar) consciências, principalmente das novas gerações, que deixam de interagir, de ler, de brincar, presas à tela do celular que lhes oferece uma realidade utópica, fantasiosa, inacessível à grande maioria? Como educar para a consciência crítica e para a liberdade, quando empresas e pessoas mal intencionadas investem bilhões na criação de programas que disseminam fake news, alimentando o negacionismo, fortalecendo o preconceito, pugnando por pautas que atentam contra a vida, contra a inclusão, a solidariedade e o diálogo? O drama de milhões de pessoas viciadas em jogos online, recentemente noticiado, tem trazido à tona a capacidade de manipulação das mentes, sonhos e desejos das pessoas em função de interesses escusos. As síndromes psicológicas, surtos, fobias de toda espécie, aumentam num ritmo assustador. O crescente número de homens e mulheres que afirmam não encontrar um sentido para a vida revela que vivemos uma verdadeira crise existencial.

    No mundo inteiro as mudanças climáticas, com os eventos extremos cada vez mais frequentes, afetam a todos, especialmente os mais vulneráveis. No Brasil, todos sentimos os impactos das queimadas que devastaram o país, resultado, em grande parte da ganância e do descaso pelo bem comum. Animais, seres humanos e vegetação sofrem. Cientistas avisam que estamos ultrapassando um “sinal vermelho”, a partir do qual a vida humana na terra estará em grave risco. Na verdade, até as expressões têm se modificado, passando a tratar a situação como uma verdadeira “ebulição climática”.

    A política, que deveria ser o saudável e humano exercício na busca pelo bem comum, da criação de possibilidades de esperança e de mudanças em prol da coletividade, tornou-se sobretudo um meio de ascensão pessoal, de domínio, de poder e controle sobre tudo e todos. Assistimos, no Brasil e em outros países, a um espetáculo de horror, com acusações verbais e violências físicas, morais e psicológicas, no intuito de angariar votos. Há a espetacularização do grotesco. A religião e o nome de Deus são manipulados em função dos interesses mais baixos e mesquinhos. Em nome da moral e dos bons costumes, defendem-se pautas extremamente desumanas, violentas, xenófobas, fascistas e racistas.

    O cenário em que nos encontramos nos faz questionar sobre o protagonismo do ser humano neste mundo, e até sobre a continuidade de nossa existência. Para alguns, estamos passando por um ciclo natural da história, que se repete de tempos em tempos, que independe da ação humana, negando todas as evidências das ciências e da razão. Outros agem como nos “tempos do dilúvio”: apesar dos avisos, dos sinais cada vez mais claros de que a situação está passando dos limites, anestesiados e tomados pelo torpor, continuam agindo como se nada estivesse acontecendo, esperando, talvez, que a situação se ajeite por si só. Para outros, o cenário é desanimador, quase de desespero, que nos levará a uma realidade imprevisível, desconhecida, prenúncio do caos.

    Na verdade, o futuro depende das escolhas que fazemos no presente, no aqui e agora da história. Com certeza muitas das transformações que se sucedem independem de opções individuais. A trajetória do ser humano na história está permeada de exemplos, onde as transformações, as mudanças, as revoluções, geram um alternar-se de poder e de domínio, que interferem profundamente na vida das pessoas, e sobre as quais a maioria dos envolvidos não tem quase nenhum controle.

    Para focarmos apenas no decurso dos dois últimos milênios, já na era cristã testemunhamos a lenta e inexorável decadência de uma estrutura milenar, culminando na ruína e queda de um dos mais poderosos impérios da história: o Império Romano. A ascensão dos povos bárbaros, militarmente inferiores aos romanos, mas munidos de muita garra, senso de honra e valentia, são a prova de que, em certos momentos, só a força das armas não basta para se impor e garantir a supremacia. A ascensão do islã, a partir do século VII, que uniu ao vigor militar o poder da religião, evidencia a importância e a relevância que as orientações religiosas e espirituais desempenham nos eventos humanos. O mesmo pode ser dito da Reforma Protestante, que emergiu num contexto de falta de referências, de crise antropológica e insegurança institucional marcada pela transição da Idade Média para a Idade Moderna. Estes fatores, aliados às divergências na compreensão e vivência dos dogmas e doutrinas da Igreja Católica, possibilitaram um ambiente fecundo para a eclosão de uma nova forma do ser humano compreender-se e situar-se no mundo, de relacionar-se com Deus e com os demais, além de permitir o surgimento de forças políticas e sociais inovadoras. A Revolução Francesa, fundamentada na defesa da liberdade, igualdade e fraternidade, e expressa na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), promoveu a universalização dos direitos sociais e das liberdades individuais. Com a Revolução, grandes transformações foram aos poucos assimiladas em quase todo o mundo, resultando em uma nova correlação de forças no cenário ocidental.

    Como podemos constatar, ao longo da história revoluções e transformações têm sido motoras de evolução. Poderíamos argumentar que, de revolução em revolução a humanidade vai evoluindo. Na verdade, a questão é que, no atual momento de “virada” em que nos encontramos, não se trata apenas de mudanças políticas, avanços sociais, transformações antropológicas, novos modelos de governança. Pela primeira vez na história, coloca-se em xeque a possibilidade da espécie humana continuar a habitar neste planeta. Alguns cientistas já falam abertamente que corremos o risco de entrarmos em extinção. E, é importante ressaltar, não haverá um “fim do mundo”. O planeta, não vai deixar de existir. Terá fim a existência da espécie humana neste mundo, ou de grande parte dela. Se a espécie humana desaparecer deste mundo, o planeta terra volta a ser o que sempre foi: um verdadeiro jardim criado por Deus.

    Num contexto como este, homens e mulheres de fé, que acreditam na Boa Nova de Jesus, na capacidade transformadora do Evangelho, no potencial do amor partilhado, gerador de solidariedade, de fraternidade, não podem deixar de se perguntar: como alimentar a esperança? A fé teria algum papel a desempenhar, no sentido de oferecer possibilidades e alternativas diante dessa situação? De que modo a vivência da fé pode ajudar a superar essa situação? É possível, apesar de tudo, esperançar, como nos convoca o Papa Francisco? O que virá dessa situação caótica que a cada dia torna o futuro mais imprevisível?

    Em situações de crise é importante ficarmos atentos aos sinais que possam nos ajudar a perceber que nem tudo está perdido. Nesse sentido, uma das personalidades que sempre nos recordam que é possível continuarmos acreditando no ser humano, em sua capacidade de superação e de realização do bem, é o Papa Francisco. Talvez seu gesto de, aos 87 anos de idade, sentado numa cadeira de rodas, empreender uma viagem longa e cansativa ao continente asiático, possa ser um sinal de que não podemos simplesmente “jogar a tolha”, nem nos render ao pessimismo e ao derrotismo.

    A viagem de Francisco, de 02 a 13 de setembro de 2024, visitando a Indonésia, Papua Nova Guiné, Timor Leste e Singapura foi, como sempre, marcada por muitos gestos significativos. O próprio fato de se deslocar numa jornada exaustiva, para visitar alguns países quase insignificantes no tabuleiro das potências mundiais, com uma minoria de cristãos, já traz consigo alguns questionamentos. O gesto de Francisco nos recorda que o mais importante é a abertura ao encontro, a busca do diálogo e do conhecimento do outro. Nesse sentido, o Papa teve vários encontros com lideranças de religiões não cristãs, que retribuíram a visita com demonstrações de carinho e afeto. Os gestos do pontífice sempre nos remetem àquilo que é o essencial do cristianismo, mas sobretudo, nos recordam a essência do que é ser humano.

    Somos seres de relação, criados para o encontro, para a convivência, para o cuidado. Isso comporta alguns princípios, que fazem parte de todas as culturas, e que precisam sempre de novo ser afirmados e defendidos. O cuidado e a atenção aos mais fracos, a ética nas relações entre os povos, a busca de soluções pacíficas para os conflitos, a partir do diálogo e do respeito às diferenças, o empenho na superação da pobreza e das desigualdades, o cuidado e o respeito pela Casa Comum, como um bem de todos.

    O Sínodo dos Bispos, que em outubro realizou sua segunda sessão, também é cheio de simbolismo e de sinais que podem alimentar a esperança. Quando as pessoas do mundo inteiro, lideranças religiosas, leigos, especialistas, teólogos e teólogas, se reúnem em círculo para, de igual para igual, debater ideias, dialogar e buscar alternativas para uma ação da Igreja que corresponda aos anseios da atualidade, para melhor anunciar a Boa Nova, pode-se dizer que há esperança.

    No dia 24 de dezembro de 2024, às 19 horas, com a Celebração Eucarística presidida pelo Papa Francisco na Praça de São Pedro, será oficialmente aberto o Jubileu de 2025. Ao convidar as pessoas do mundo inteiro a serem Peregrinos da Esperança, (Peregrinantes in Spem) Francisco está lançando um convite a nos aventurarmos em um itinerário, em uma jornada, onde a Esperança seja ao mesmo tempo nossa parceira e guia, companheira de caminhada e objetivo a ser alcançado. Na verdade, a esperança se constrói e se renova no empenho concreto de cada dia. É algo que depende das opções e escolhas de cada um. Mas também é fruto de um empenho coletivo. Peregrinos não caminham sozinhos. As agruras do caminho se tornam mais leves quando caminhamos juntos. É uma proposta concreta a nos empenharmos, enquanto comunidade humana, enquanto sociedade, na busca de soluções, de possibilidades, de saídas para as imensas crises em que nos encontramos, no interesse pelo bem comum.

    Neste número da Grande Sinal trazemos uma série de reflexões inspiradas nas celebrações de vários Jubileus. Os Jubileus são datas comemorativas importantes, de festa, mas sobretudo de revisão e de renovação dos ânimos e da esperança. De que modo a vida, os feitos, as realizações de grandes personagens do passado podem continuar a ser inspiração para nossos dias? Nesse sentido, os personagens que nos acompanham neste número nos revelam a ação e a graça de Deus presente na história, no cotidiano simples, na vida concreta de homens e mulheres que foram instrumentos dóceis à ação do Espírito. Cada um e cada uma, com seu testemunho, seus ensinamentos, nas suas dores e alegrias, nos ensinam grandes coisas. E continuam a nos indicar caminhos e possibilidades.

    Todo ano a cidade de Canindé, a cerca de 120 km de Fortaleza, no sertão do Ceará, torna-se meta de milhares de peregrinos, que se dirigem ao segundo maior Santuário Franciscano do mundo, atrás apenas de Assis, na Itália. Neste ano de 2024, a festa revestiu-se de maior solenidade, pela celebração dos 800 anos dos Estigmas de São Francisco. O Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, frei Massimo Fusarelli, que geralmente passa a festa de São Francisco na cidade de Assis, na Itália, este ano se fez peregrino em Canindé. Frei Gilberto da Silva, professor de Espiritualidade no Instituto Teológico Franciscano, nos ajuda a refletir sobre a importância deste jubileu, para os franciscanos, para a Igreja e para os fiéis em geral. Em Francisco das Chagas, os devotos veem um verdadeiro imitador do Cristo pobre, humilde e crucificado. Como afirma frei Gilberto, diante das crises atuais, a espiritualidade dos estigmas enfatiza o amor, a esperança e encoraja a resiliência e a fraternidade. Francisco das Chagas fala eloquentemente aos sofredores deste mundo, aos chagados pelas misérias, pelas injustiças, animando-os e encorajando-os a seguirem as sendas de Jesus Crucificado.

    No ano de 2023 a Igreja celebrou os 150 anos do nascimento de Santa Terezinha do Menino Jesus. O professor Bruno Tamancoldi nos oferece uma reflexão sobre o processo de conversão desta santa tão querida e amada em nossos tempos. Terezinha passou por um complexo processo de amadurecimento e conversão, desde a mais tenra infância, influenciada pelo ambiente familiar, mas também tocada pela graça de Deus, que se revela no cuidado amoroso e terno que lhe tributavam seus familiares. Seu processo de conversão nos permite perceber que Deus age através e apesar das fraquezas e debilidades humanas.

    A exploração e o descaso para com a Casa Comum abrem verdadeiras feridas não apenas na natureza, mas na vida das pessoas, e dos seres, que machucados e chagados, sangram diante dos açoites dos poderosos. Partindo da espiritualidade dos estigmas, Padre Elizeu da Conceição, sacerdote Estigmatino, partilha conosco uma reflexão que nos possibilita vislumbrar, na contemplação das chagas de Cristo, forças para enfrentar os desafios e sofrimentos, e unir-nos na busca de conversão e de novas formas de vida e de relacionamentos saudáveis.

    “Figura de extraordinária relevância, um símbolo de esperança, de redenção, de acolhimento e de integração”. Com estas palavras os Frades Menores da Sicília inauguraram as celebrações do Vo Centenário do Nascimento de São Benedito, o Mouro. Filho de escravos, Benedito encontrou entre os franciscanos de Palermo, no sul da Itália, um ambiente propício à uma vida de santidade e seguimento do Evangelho, no modelo proposto por Francisco de Assis. Frei Alvaci Mendes da Luz, estudioso da vida do ilustre franciscano, nos brinda com uma reflexão sobre a importância de, ao mesmo tempo em que celebramos o seu centenário, tornarmos vivos e atuais os ensinamentos de vida deste homem tão querido pelo povo brasileiro.

    Boaventura de Bagnoregio, cognominado por Leão XIII o “Príncipe da Teologia Mística”, conhecido entre os franciscanos como o “Doutor Seráfico”, marcou profundamente seu tempo, e continua a ser um baluarte do pensamento teológico na Igreja atual. Irmã Salete Dal Mago, franciscana das Irmãs de Nossa Senhora Aparecida, realizou uma profunda pesquisa sobre a contribuição deste importante filósofo e teólogo para o pensamento na Igreja, como parte de seu doutorado na Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, e partilha conosco neste número da Revista um pouco das suas ricas conclusões. Neste ano recordamos os 750 anos da morte deste legítimo discípulo de Francisco de Assis (1274).

    Na sessão intitulada Reflexões trazemos alguns temas que nos inspiram na busca de respostas criativas a questões instigantes, relacionadas à vida humana, às relações e à espiritualidade. Nos últimos meses temos testemunhado situações alarmantes que nos mostram as proporções e os efeitos devastadores que a crise climática está tomando, no mundo inteiro. O que antes era denominado de modo quase ingênuo de “aquecimento global”, passou ao nível de “emergência”, “colapso”, e hoje se fala em “ebulição climática”. Dentre tantos desafios que tal situação nos apresenta, coloca-se a questão de como educar as novas e futuras gerações para lidarem com as consequências desta situação, que se mostra cada dia mais preocupante. Como “curricularizar” a crise ambiental, diante das tantas e variadas questões que envolvem o ambiente educacional? A educadora Aleluia Heringer Lisboa nos propõe algumas possibilidades de ação, de modo que se consiga uma articulação possível entre a denúncia da situação, ao mesmo tempo em que sejam propostas alternativas e oportunidades de ação no campo da educação

    As perplexidades e questionamentos que o uso da Inteligência Artificial levanta ainda não podem ser suficientemente respondidos. O fato é que, em algumas áreas, seu emprego já traz modificações radicais na forma como as pessoas se relacionam. A partir dessa realidade, Martín Carbajo, professor de várias instituições de ensino na Europa e Estados Unidos, partilha conosco uma reflexão onde explora as várias possibilidades, mas também as limitações e os riscos que o manuseio da IA comporta, principalmente no âmbito familiar e educativo. O autor propõe, como possibilidade e alternativa, o incremento dos valores do humanismo proposto pelo Papa Francisco, no caminho trilhado por Francisco de Assis.

    A amizade é cantada e decantada por filósofos em todos os tempos da história. No cristianismo, principalmente no período medieval, desenvolveu-se o tema da Amizade espiritual. É esse o tema da reflexão de Irmã Placida, monja beneditina do Mosteiro da Virgem, em Petrópolis. Irmã Placida se debruça sobre a obra de Elredo de Riveaux, um monge cisterciensce inglês, do século XI. Para Elredo, a amizade verdadeira, baseada e tendo como princípio o amor de Deus, faz a pessoa melhor, permite-lhe experimentar o verdadeiro amor de Deus, expresso através da amizade humana.

    Uma reflexão sobre dois importantes místicos da Igreja: Ruysbroek e São João da Cruz encerra a sessão Reflexões. Padre Carlos Toseli nos ajuda a refletir sobre os caminhos propostos por estes dois homens de Deus, para se chegar à iluminação: o vale ou o monte?

    “Não sejam administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!”. Essa foi a afirmação do Papa Francisco aos jovens economistas reunidos em Assis. Que os artigos e reflexões aqui partilhados generosamente pelos nossos colaboradores, a quem deixamos nosso sincero agradecimento, possam indicar aos nossos queridos leitores vias e meios para que sejamos, também nós, homens e mulheres corajosos, guiados pelos valores do Evangelho. Que nestes tempos onde o medo viceja, sejamos pregoeiros de sonhos, mensageiros de novas e fecundas possibilidades, arautos de esperança. Uma esperança pautada na luta e no empenho por um mundo mais humano e justo, no respeito à natureza, na defesa da vida e da dignidade de todos, inspirados por aqueles e aquelas que souberam fazer da vida um poema de amor e doação ao próximo, na construção da Paz. Boa leitura! Paz e Bem!

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • FRANCISCO DE ROMA E DE ASSIS: Restaura a minha Igreja
    v. 78 n. 01 (2024)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

     

    Naquele frio e chuvoso anoitecer na Praça de São Pedro, no dia 13 de março de 2013, os olhos do mundo inteiro estavam fixos na chaminé mais famosa do mundo, nos telhados da Capela Sistina, no Vaticano. Repetindo um rito milenar, os Cardeais reunidos em conclave votavam pela escolha do novo Papa. Depois de cinco escrutínios e duas “fumaças pretas”, às dezenove horas e oito minutos de Roma, a fumaça branca finalmente esvoaçou pelos céus da Cidade Eterna, anunciando a boa-nova da eleição de um novo Pontífice. Depois da tão inesperada quanto imprevista renúncia de Bento XVI, muitos imaginavam que um período de “grandes expectativas e emoções” estaria chegando ao fim. Da loggia centrale (balcão central) da Basílica de São Pedro, o Cardeal Decano pronunciou a célebre frase Habemus Papam. Quando as solenes cortinas vermelhas se abriram, e apareceu o primeiro Papa da história que não vinha do “Velho Mundo”, alguns se deram conta de que as emoções estavam apenas começando.

    Ao longo de seus pouco mais de 11 anos de Pontificado, muitas surpresas marcaram a trajetória de Bergoglio à frente da Barca de Pedro. O primeiro Papa jesuíta, o “Papa do fim do mundo”, como ele se referiu a si mesmo, causou surpresa ao revelar o nome que escolhera: Francisco, o santo dos pobres, o santo humilde e despojado de poder, o santo que, na juventude, foi chamado a “restaurar a Igreja que estava em ruínas”, o amigo da natureza. Aquele não era um nome qualquer, mas carregava consigo uma enorme gama de responsabilidades e consequências. Seus primeiros gestos revelaram que a escolha do nome, na verdade, representava um verdadeiro programa de governo. O fato de decidir morar na Casa Santa Marta, onde se hospedam os Bispos que vão a Roma, e onde ele mesmo se hospedou durante o conclave, e não nos apartamentos do Palácio Apostólico, já foi um eloquente sinal das mudanças que trazia com sua eleição. Logo ficou evidente que os gestos, por mais simples e ingênuos que pudessem parecer à primeira vista, expressavam o modo de Francisco entender seu papel na Igreja.

    A Igreja herdada por Francisco é uma instituição num mundo instável, tenso, desequilibrado. O cristianismo, que moldou e sustentou a sociedade ocidental, não responde mais aos grandes anseios da humanidade. Para além da terrível situação de vulnerabilidade eclesial ad intra, enfrentada por Bento XVI durante seu pontificado, recrudescida pelos escândalos dos “Vatileaks” e pelas denúncias de abusos, o fato é que as mudanças na sociedade incidem diretamente na atuação da Igreja, dizem respeito à sua presença no mundo, seu modo de se relacionar com as realidades temporais, com o ser humano. 

    A consciência da seriedade, bem como da imprevisibilidade destas enormes e intensas transformações, fizeram com que o Papa Francisco afirmasse várias vezes que vivemos não numa época de mudança, mas numa “mudança de época” (ou “transição epocal” como afirmam alguns). Essa expressão sintetiza uma série de elementos que, desde o pós-guerra, com o advento da “pós-modernidade”, situam o ser humano e a humanidade no centro de uma verdadeira era de transição. Trata-se, de fato, de uma era de passagem, na expectativa do surgimento de algo novo, de novos paradigmas, de novas possibilidades de comportamento, de compreensão do papel do ser humano na história. O modo como o ser humano se percebe e se situa no mundo mudou profundamente. Às muitas e importantes conquistas alcançadas, principalmente nas últimas décadas, seguiram-se inúmeros desafios e questionamentos, incertezas, inseguranças. 

    Tais mudanças abalam os alicerces e colocam em xeque a estabilidade e a permanência das instituições tradicionais, das autoridades, dos poderes instituídos. A Igreja, presente e atuante no mundo, também sofre os efeitos desta crise. Certamente poucos são os cristãos católicos, hoje, que consideram que a situação da Igreja esteja bem no mundo e na sociedade. Menos ainda são aqueles que acham que a Igreja não precisa se renovar. A maioria dos católicos “praticantes”, que vão à missa todo domingo, apoiam muitas das propostas colocadas em discussão, se não pelo próprio Papa, pelo menos trazidas à berlinda a partir de várias de suas intervenções e de seu entorno. As atitudes e reações frente àquilo que se considera que não vai bem, bem como as propostas de mudança, é que podem variar.

    Há aqueles que se apegam ferrenhamente ao passado, numa atitude saudosista, rejeitando tudo o que possa parecer concessão ao “mundo moderno”, que possa colocar em risco a fé e a sã tradição e a ortodoxia. Impera aí um misto de ressentimento e mágoa, de resistência e fechamento defensivo em relação a um mundo que não entende e não aceita a religião, a Igreja.

    Outros simplesmente continuam fazendo as mesmas coisas que sempre fizeram, dando as mesmas respostas a problemas que não existem mais, esperando que os resultados sejam diferentes. O Papa chama isso de “tentação do imobilismo”: dão respostas velhas a problemas novos. E dizem: foi sempre assim.

    O fato é que a Igreja, na segunda década do século XXI, encontra-se numa verdadeira encruzilhada. E a solução não está no enclausurar-se por trás das paredes das sacristias, ou fechando-se nos grupos dos “puros e perfeitos”, ou apegando-se a ritos, protocolos e formalidades, que condizem muito bem com um museu, mas não dizem nada a boa parte da sociedade. Ao inaugurar o caminho Sinodal, Francisco rogava ao Espírito para que nos livre de “nos tornarmos uma Igreja de museu, bela mas muda, com tanto passado e pouco futuro”. Dirigindo-se às superioras e delegadas das Carmelitas Descalças reunidas em Roma, no dia 18 de abril, Francisco afirmava: “As estratégias defensivas são resultado de uma volta nostálgica ao passado. Isso não funciona, a nostalgia não funciona. A esperança evangélica vai em outra direção. Nos dá a alegria da história vivida até hoje, e nos faz capazes de olhar para o futuro, com as raízes que recebemos”.

    Muitos elementos da realidade que testemunhamos hoje já foram percebidos e discutidos, há 60 anos, pelos Bispos do mundo inteiro, reunidos entre 1962 e 1965, no Concílio Vaticano II. Os prelados buscaram dar respostas às urgências que se desenhavam no horizonte, aos questionamentos e desafios colocados à Igreja e sua presença no mundo, à Teologia, ao anúncio do Evangelho, à espiritualidade. No entanto, sabemos hoje, quando terminou o Concílio, muitas respostas já não correspondiam às perguntas feitas. Além disso, o empenho de certos setores eclesiais em impedirem a aplicação das decisões conciliares ajudou a distanciar mais ainda a Igreja do mundo pós-moderno.  

    Francisco é um Papa que veio “do fim do mundo”, de uma Igreja de rosto moreno, latino-americana, formado na escola da teologia argentina conhecida como a “teologia do Povo”, de fora da “bolha eurocêntrica” do poder eclesial. Distante dos palácios onde são geradas as políticas vaticanas, que buscam, sobretudo, manter o status quo, Francisco tem plena consciência de que a Igreja precisa, urgentemente, guiar-se a partir de novos paradigmas. Seu modo de entender o pontificado não é apenas a partir de uma maior simplicidade, austeridade, despojado de pompa e poder. É uma Igreja que busca de todas as formas estar mais próxima do povo, vizinha aos grandes dramas humanos, não apenas mestra ou juíza, mas, sobretudo, mãe. Onde a evangelização seja entendida a partir da inculturação, onde o encontro com a mensagem de Jesus se dê através do diálogo e do encontro com as pessoas, na realidade concreta onde elas vivem, a partir das mais diferentes culturas. Não é uma outra Igreja. É a mesma instituição, do modo como sempre foi chamada a ser: misericordiosa, acolhedora, sinodal, onde todas, todas as pessoas, possam fazer a experiência pessoal do encontro com Jesus.

    Desde os inícios de seu Pontificado, a vida pessoal simples e despojada de Francisco foi uma crítica, nem sempre sutil, às instâncias de poder, ao clericalismo, ao legalismo sem misericórdia. A Evangelii Gaudium, gestada ainda no Pontificado de Bento XVI, após o Sínodo dos Bispos, transforma-se, com Francisco, num libelo “por uma Igreja em saída”, com cheiro de ovelhas, como um “hospital de campanha”, que cuida com atenção, com carinho, que acolhe e cura. A reforma da Cúria Romana insere-se nesta dinâmica proposta pela Evangelii Gaudium. À imagem de um Papa com caráter “transcendente”, sacralizado, distante das realidades humanas, como alguns pontificados mais recentes buscaram reafirmar, Francisco contrapõe a imagem de um Papa que é, sobretudo, um ser humano. Suas intervenções revelam preocupações extremamente “imanentes”, cruciais à convivência e à existência, muitas vezes dramáticas, do ser humano. O esforço por conseguir dar mais espaço na Igreja às mulheres, as intervenções em favor das minorias, revelam uma profunda sintonia com realidades muito atuais e urgentes.  

    No entanto, a atuação de Francisco não se resume à sua proximidade com o povo, nem se restringe a uma atuação pastoral, intra eclesial. Desde o início, junto com suas intervenções mais pastorais, o Bispo de Roma revela uma lucidez teológica, uma visão de mundo, que fez com que ele se tornasse uma das lideranças mais respeitadas da atualidade. Isto é resultado da consciência que o Papa tem de sua missão “extra eclesial”. Num momento em que a Igreja estava se tornando praticamente irrelevante no cenário mundial, Bergoglio a coloca de novo no centro dos debates. Pode-se discutir se o mundo acolhe ou age de acordo com os princípios defendidos por Francisco, mas, não se pode negar que suas alocuções, suas intervenções, seus gestos proféticos, têm uma incidência enorme nas relações e no modo como se configuram as conexões mundiais.

    Desde seus esforços para o diálogo com o mundo islâmico e ortodoxo, seus discursos pela paz, pela justiça social, Francisco se revela uma voz dissonante e incômoda num cenário cada vez mais polarizado, dado à violência, ao fechamento em torno de si mesmo. A Encíclica Laudato Si’ é um marco na história da Igreja, pela importância, urgência e atualidade do tema, mas sobretudo pela capacidade de percepção dos vários aspectos, sociais, políticos, culturais, econômicos, envolvendo o drama da exploração e destruição da Casa Comum. O apelo a uma Ecologia Integral é uma das mais importantes contribuições do Pontificado de Francisco no esforço pela mudança de paradigmas na defesa do meio ambiente. Trata-se de um verdadeiro clamor profético, diante de uma situação dramática que afeta não apenas os cristãos católicos, mas a humanidade toda, e que pode tornar-se irreversível.

    A Economia de Clara e Francisco é outra iniciativa que traz ao centro das discussões um clamor mundial. Aliando-se aos jovens e aos economistas do mundo inteiro, partindo da cidade de Assis, propondo como exemplo aquele jovem que no século XIII renunciou a todos os bens por causa do Bem maior, o Cristo do Evangelho, o Papa propõe uma discussão sobre uma nova forma de a humanidade se relacionar com os bens, com o capital. Na verdade, sua intenção é gerar o debate, é “acender o estopim” de um processo, que possa gerar alternativas globais, que resultem numa economia mais justa, fraterna, solidária e a serviço do ser humano. Contra a idolatria do capital e a ideologia neoliberal, que gera exclusão, injustiça e morte.      

    Neste número da Revista Grande Sinal nossos colaboradores compartilham com os leitores temas relacionados a algumas das principais questões com as quais se ocupou o Papa Francisco nesta primeira década de seu Pontificado. Francisco tem uma Boa Nova transformadora para as vítimas? é a pergunta da qual parte o professor Allan Coelho, para analisar as principais intervenções do Papa, e seus impactos na Igreja e na sociedade. Um pontificado tem sua razão de ser no anúncio do Evangelho, da “Boa notícia”, que se dá concretamente no serviço aos irmãos, na denúncia das mazelas, das injustiças, mas também no exercício de reforçar a esperança, e anunciar novas possibilidades e perspectivas. No artigo o autor pergunta se há alguma novidade no projeto do Papa Francisco, que possa oferecer sinais de esperança aos que mais sofrem na sociedade. Nesse sentido, pode-se afirmar que Francisco imposta seu papado a partir do princípio da reforma, da Cúria e da Igreja, mas também toca a temas extremamente importantes a toda a sociedade. Sua origem, sua formação, sua espiritualidade, desempenham um papel importante em seu pontificado, e ajudam a entender suas opções.   

    Desde o ano de 2023 até o ano de 2026 a Ordem Franciscana estará celebrando uma série de eventos que marcaram a vida de seu fundador e de seus seguidores, até os dias de hoje. Serão celebrados os 800 anos da Regra Bulada, do Presépio de Greccio, dos Estigmas de São Francisco, do Cântico das Criaturas e do encontro do Poverello de Assis com a irmã morte. São eventos que permitem aos franciscanos e franciscanas do mundo inteiro reavaliar seus passos no seguimento do carisma originário do jovem de Assis, rever suas opções e inspirações e, ao mesmo tempo, encetar caminhos novos, na busca da atualização do carisma identitário. Frei Vitório Mazzuco, no artigo intitulado “De Jubileu em Jubileus”, nos propõe uma reflexão sobre o sentido dos jubileus, a partir do contexto no qual vivem, franciscanos e franciscanas, e todas as pessoas que têm, em Francisco de Assis, em seu carisma, em sua vida, um modelo e inspiração no seguimento de Jesus e de seu Evangelho. Como afirma o autor: “É tempo também de repensar a identidade deste carisma que tem muito a revelar ao mundo e a cada pessoa que admira São Francisco”. 

    Os teólogos Agenor Brighenti e Rafael Luciani, ambos membros do grupo de teólogos expertos do Sínodo dos Bispos, no texto intitulado Igreja Sinodal em Missão, apresentam aos leitores um resumo do Relatório de Síntese da Primeira Sessão da Assembleia Sinodal, que aconteceu entre 4 e 28 de outubro de 2023, em Roma. Como afirmam os autores, o texto original é bastante extenso, o que pode dificultar o acesso de um público mais amplo ao seu conteúdo. O texto original foi publicado em espanhol, italiano, português, inglês, alemão e francês. O documento afirma que o caminho sinodal está “colocando em prática aquilo que o Concílio nos ensinou, a respeito da Igreja como Mistério e Povo de Deus”. O caminho sinodal é um processo, que pretende comprometer toda a Igreja e a Igreja toda, integrando a contribuição de todos os batizados, nas suas mais variadas vocações, para uma melhor compreensão e prática do Evangelho. Acreditamos que a publicação desta síntese preparada pelos autores possa contribuir para que nossos leitores conheçam mais sobre o processo sinodal, compreendam sua importância, e se animem a assumir o espírito sinodal em suas práticas cotidianas.

    “Não se esqueça dos pobres”, foi a frase quase sussurrada nos ouvidos do recém-eleito Papa, pelo Cardeal brasileiro Cláudio Hummes, no momento em que estava definida sua eleição à Sé de Pedro. Pouco depois, no balcão do Vaticano, diante de todo o mundo, foi comunicado que o novo Pontífice escolhera o nome de Francisco. Uma escolha corajosa, que se revelou um verdadeiro programa de governo. O frade menor capuchinho, frei Vanildo Zugno partilha conosco uma reflexão onde coloca em destaque um dos elementos mais importantes da espiritualidade franciscana, que foi assumido pelo Pontífice argentino: a sinodalidade. Segundo ele, “a conciliaridade/sinodalidade é uma das marcas fundamentais do pontificado do Papa Francisco”. Através da análise da Legenda dos Três Companheiros, um relato originário e fundante da espiritualidade franciscana, o artigo põe em evidência a trajetória espiritual de Francisco de Assis, seu processo de transformação, destacando no “esvaziamento” o elemento central no processo. Esse dado fundamental da experiência franciscana é o caminho para a conciliaridade/sinodalidade hoje.   

    A Congregação para a Doutrina da Fé publicou, no dia 15 de março de 2021, um documento denominado Responsum ad dubium, onde afirmava que não era lícito aos sacerdotes abençoarem casais homoafetivos que pedissem algum reconhecimento religioso em sua união. No dia 18 de dezembro de 2023, o Dicastério para a Doutrina da Fé publicava a Declaração Fiducia Supplicans, Sobre o Sentido Pastoral das Bênçãos. Partindo de uma explanação sobre a doutrina da benção, em seu sentido litúrgico, pastoral e teológico, a Declaração se detém, de modo particular, sobre a benção aos casais em situações irregulares, e sobre as bênçãos aos casais do mesmo sexo. A partir destes dois documentos, a professora Alzirinha Souza apresenta uma reflexão sobre os avanços realizados no Pontificado de Francisco em relação aos LGBTQIA+ e as questões pastorais vinculadas ao tema. Pela natureza polêmica do assunto, os dois documentos foram recebidos com surpresa, geraram acalorados debates, críticas, mas também foram percebidos como um momento de abertura, a partir de um processo em movimento. Não obstante, não se pode negar que a temática desenvolvida diz respeito a uma urgência teológica, humana e pastoral, e é papel da Teologia refletir sobre ela e auxiliar no debate e no aprofundamento das várias questões envolvidas.

    Em plena pandemia de Covid, no ano de 2020, o Papa Francisco escreveu um pequeno livro, intitulado “Vamos sonhar Juntos: o caminho para um futuro melhor”. Frei Sandro Roberto da Costa desenvolve e aprofunda algumas ideias apresentadas no citado livro, que podem ajudar as comunidades cristãs e as fraternidades religiosas a vivenciarem, na prática do dia a dia, o espírito da sinodalidade.

    Na parte da Revista dedicada às Reflexões, trazemos um texto da professora Maria Tereza Rosa, onde ela reflete sobre um dos temas mais “espinhosos” à Igreja na atualidade: o enfrentamento da cultura de abusos. A autora busca fazer um histórico do processo através do qual a Igreja, nos últimos anos, foi tornando-se cada vez mais consciente da gravidade da situação, e de suas consequências. Essa tomada de consciência fez com que o Papa Francisco criasse mecanismos mais efetivos no combate aos abusos, e de apoio e sustento às vítimas.

    Fechamos este número com um artigo de frei Ludovico Garmus, que partilha conosco algumas ideias sobre a fraternidade e a amizade social, tema da Campanha da Fraternidade deste ano de 2024. O renomado biblista, a partir da análise do livro do Gênesis 1-11, apresenta uma reflexão sobre o modo como os autores bíblicos entendiam e viviam as relações e os conflitos, fossem entre os irmãos, parentes ou entre povos distintos. Apesar de tratar-se de relatos derivados de um ambiente cultural muito distinto de nossa realidade atual, a sabedoria de vida presente nestes relatos, lidos à luz da fé, podem contribuir para refletirmos sobre o tema da fraternidade e da amizade, do respeito, do diálogo e da solução de conflitos.

    Nestes 11 anos de Pontificado, a atuação de Francisco mostrou-se em profunda sintonia com os grandes dramas que tocam a todos os setores da humanidade. Pode-se dizer que aquela “lufada de ar fresco”, cheia de entusiasmo e alento, que João XXIII auspicava que invadisse e renovasse todos os setores da Igreja, de um certo modo está entrando com o Pontificado de Francisco. As mudanças, todos sabemos, são extremamente desafiadoras, trazem consigo medo, insegurança. A tentação é de se fechar, ou buscar refúgio no passado, naquilo que “sempre deu certo”.

    Os desafios enfrentados por Francisco são imensos. Talvez nenhum Papa tenha sofrido tanta oposição quanto Francisco, em seu esforço por renovar a Igreja e dar lugar à ação do Espírito.  Mas a força do mesmo Espírito e o ânimo evangélico que o movem, nutrido por uma profunda espiritualidade que brota de sua experiência pessoal, fazem com que Francisco siga em frente e não desanime, conduzindo com firmeza, com alegria e profética esperança, a “Barca de Pedro”.

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • ESPIRITUALIDADE, JUSTIÇA SOCIAL E SOLIDARIEDADE
    v. 77 n. 02 (2023)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

     

    ESPIRITUALIDADE, JUSTIÇA SOCIAL E SOLIDARIEDADE

     

    No início do mês de outubro de 2023 a Igreja testemunhou um dos momentos mais importantes de sua caminhada nas últimas décadas, protagonizado pelo Papa Francisco, com a abertura do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade. Com o evento inaugurado em Roma no dia 04 de outubro, dia do Santo cujo nome o Pontífice do “fim do mundo” escolheu como modelo e inspiração, Papa Francisco convoca a todos os cristãos a serem homens e mulheres de esperança, de olhos fitos em Jesus e em sua missão. Como afirmava no discurso de abertura: “Não queremos glórias terrenas, não queremos parecer bem aos olhos do mundo, mas fazer-lhe chegar a consolação do Evangelho, para testemunhar melhor, e a todos, o amor infinito de Deus”. Como tem afirmado outras vezes, em várias oportunidades, o Papa insiste numa Igreja hospitaleira, de portas abertas, de diálogo, de acolhida.

    Como corresponder ao mandato evangélico, afirmado pelo Papa, de “testemunhar o amor infinito de Deus” no atual momento de nossa história? Se fizermos uma avaliação um pouco mais crítica da realidade que nos cerca, em todos os âmbitos da vida, constataremos que não está sendo tarefa nada fácil para a Igreja, para os cristãos e para os homens e mulheres de boa vontade em geral, sermos testemunhas do amor. Mas, para além de elencar as desgraças e conflitos, o Papa propõe o caminho da esperança. Se afinarmos os ouvidos, podemos quase ouvir os ecos das palavras do querido Papa João XXIII, no discurso de abertura do Concílio Vaticano II, em 1962, quando exorcizava os “profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”.

    Certamente não podemos ser ingênuos, ignorando os terríveis conflitos que marcam nosso tempo, as tremendas injustiças sociais, que geram legiões de miseráveis, às voltas com o desemprego, a fome e a violência nas periferias das metrópoles. Como ignorar as multidões de imigrantes e refugiados, crianças, idosos, mulheres, que tentam escapar da miséria ou da guerra, que mostram no rosto a imagem de um Deus desfigurado pelo sofrimento, pelo medo, pelo abandono? Do mesmo modo, não podemos fechar os olhos para a terrível crise climática, com as trágicas consequências que testemunhamos a cada dia, atingindo principalmente os mais vulneráveis. A mãe terra pede socorro. Diante dessa realidade, como ser anunciadores da esperança, da Boa nova, sem nos deixarmos levar pelo pessimismo, pelo desalento, mas também não abandonando a profecia, denunciando os projetos de morte, a iniquidade, as desigualdades? Talvez não tenhamos respostas prontas. Na verdade, o que vivemos hoje é o que o Papa Francisco tão bem denominou de “crise antropológica”. É essa a raiz de tantas outras crises que marcam nossos tempos. Mas algumas pistas podem nos ajudar a encontrar luzes em meio a tanta escuridão.

    Neste número da Revista Grande Sinal, continuamos com a discussão sobre a importância de uma espiritualidade que se manifeste no engajamento social, no cuidado com as pessoas, na defesa da vida, no cuidado com o planeta, com a casa comum. Vivemos numa sociedade onde a religião parece cada vez mais se distanciar da prática do amor. A dicotomia entre fé e vida parece que nunca foi tão grande. Há um verdadeiro estranhamento entre as duas realidades que, na verdade, deveriam se completar. Vivemos uma inversão de valores. Quando ouvimos alguém afirmar que é uma “pessoa de bem”, temos até um “arrepio na espinha”, dada a deturpação que esta expressão sofreu nos últimos tempos, identificando pessoas que “de bem” não têm nada. Ancorados num fundamentalismo tacanho, geralmente são pessoas que, em nome de Deus, da moral, da família e dos bons costumes, são arautos da intolerância e do ódio, defendendo as pautas mais iníquas e desumanas, atacando as minorias, espalhando fake news.

    Diante da crise dos valores, nestes tempos de “mudança de época”, tão carente de sentido e de referenciais, talvez nunca se tenha falado e buscado tanta espiritualidade e religião como hoje. Assistimos a cada dia o surgimento de “gurus” religiosos, católicos ou não, vestidos a caráter, onipresentes nas mídias de todo o tipo, que oferecem fórmulas mágicas e o caminho mais curto e seguro para se chegar ao Paraíso. Alguns insistem na doutrina, outros são radicais na moral, quase todos incutem o medo do juízo final, fazendo mais propaganda do inferno e do demônio do que de Jesus. A teologia da prosperidade nunca foi tão próspera, em todas as denominações cristãs. Profetas de uma espiritualidade desencarnada, desvinculam fé e espiritualidade da vida cotidiana, concreta, apregoando uma religiosidade centrada no cultual, no legalismo, em detrimento do amor, das relações humanas saudáveis, do cuidado com a vida.

    Certamente não é esta a proposta de Jesus. Esta não é a religião do Evangelho. Evangelizar não é, em primeiro lugar, exigir uma prática ritual, transmitir doutrina ou insistir em comportamentos morais. Embora também sejam elementos constitutivos de toda prática religiosa, antes de tudo o mais importante é focar no essencial: a adesão à proposta de Jesus. Os homens e mulheres que aceitaram o convite de Jesus de segui-lo fizeram, sobretudo, a experiência de conviver com ele como um amigo, como alguém que lhes abriu possibilidades novas, que lhes permitiu sonhar com novos horizontes que transformaram suas vidas. Jesus revelou-lhes a imagem de um Deus muito próximo deles, interessado em seus problemas e compassivo com suas fragilidades, cheio de misericórdia. Profundamente contagiados e transformados por essa mensagem, os discípulos não hesitaram em deixar tudo, colocaram-se no seguimento e foram capazes de transmitir sua mensagem por todo o mundo, até a entrega da própria vida.

    A vivência de uma espiritualidade realmente transformadora, de uma religiosidade encarnada na realidade, que seja de fato anúncio do Reino de Deus, deve ter, como referência, esta experiência do encontro com a pessoa de Jesus, de uma vida transformada pelo seu Espírito. Não basta dizer que o Evangelho é Boa nova. É importante experimentá-lo e, sobretudo, vivê-lo como boa notícia. Muito mais do que belas palavras, doutrinas, discursos elaborados, ou a preocupação com as estruturas e com o número, é sobretudo o testemunho de vida que atrai e cria discípulos.

    Numa sociedade marcada pela força da imagem, fica cada vez mais evidente a importância dos gestos. No caso do anúncio do Evangelho, precisamos de gestos coerentes, de atitudes que comuniquem, que inspirem, que toquem fundo no coração das pessoas, porque inspirados no estilo de vida de Jesus. O anúncio da Boa nova hoje, como outrora no passado, necessita de pessoas que sejam testemunhas deste encontro pessoal com Jesus, que tenham sido transformadas pelo encontro íntimo com ele, convictas de que é possível criar uma sociedade diferente, transformada a partir dos valores do Reino.

    Viver e agir hoje, como Jesus viveu e agiu, é o caminho para o anúncio. Isso passa pela acolhida calorosa e carinhosa de cada pessoa, dos excluídos da Igreja e da sociedade, sem julgamento, independentemente de sua situação de vida. Passa também pelo empenho na construção de relações humanas que sejam geradoras de cuidado e de vida, na busca de uma sociedade mais feliz, mais humana para todos. É o antigo e sempre atual arquétipo de vivência religiosa que deve ser nosso referencial: Fé e vida. Uma fé que se expressa em todos os âmbitos da vida, no engajamento político pela transformação da realidade, na defesa incondicional da liberdade, da dignidade, dos valores e direitos de cada pessoa. São realidades que devem fazer parte da vida de todos aqueles e aquelas que um dia se propuseram a trilhar os caminhos ensinados e trilhados por Jesus.

    Os terríveis acontecimentos que marcaram o Brasil nos últimos anos, no campo da administração pública, fizeram com que se tornasse comum uma certa demonização da política, como se fosse um campo pouco ou nada conveniente para a atuação de cristãos. O professor Oton da Silva Araújo Júnior, no seu artigo intitulado “Fé e Política: um baú de coisas novas e velhas”, reconhece que tratar deste tema é adentrar num verdadeiro labirinto, justamente em função das várias nuances que esta relação costuma trazer à tona. O autor destaca que a política tem sim tudo a ver com o serviço em prol do Reino, sem se prender a pautas exclusivamente eclesiais. É importante resgatarmos o genuíno sentido da política, como atividade pertinente aos cristãos, que se destina à formação de uma sociedade mais justa e fraterna, na busca do bem comum, mas sem confundi-la com a defesa de interesses pessoais, mesquinhos, confessionais.

    Neste ano de 2023 a Ordem Franciscana está celebrando os 800 anos da aprovação da Regra Bulada (aprovada), escrita por São Francisco de Assis para seus seguidores. Um código de vida que, passados oito séculos, se revela atual e inspirador na vivência do seguimento de Jesus. O professor Marco Bartoli, um dos maiores especialistas sobre Santa Clara e sobre franciscanismo, professor e pesquisador de importantes instituições acadêmicas na Itália, compartilha conosco um texto sobre a Regra de Santa Clara de Assis, fazendo uma comparação entre alguns aspectos comuns às duas formas de vida, que nos indicam a importância de buscar uma vivência do Evangelho que tenha reflexos na vida cotidiana. Entre os elementos que se destacam nas Regras de Clara e de Francisco, o autor sublinha a observância do Santo Evangelho, a obediência ao Papa e à Igreja Romana, a opção pela pobreza e a prática do trabalho. São, segundo Marco Bartoli, elementos essenciais que indicam a via para a vivência do projeto do Reino, e que sintetizam o modo como a proposta de vida de Francisco e Clara, cada um com a sua Regra, conseguiram se tornar uma verdadeira luz e referência para todos os tempos, até os dias de hoje.

    Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo, é considerada uma das maiores escritoras da literatura nacional. O professor Altamir Célio de Andrade nos brinda com uma instigante reflexão, intitulada “O Evangelho segundo Carolina de Jesus ou a gastronomia da falta”. Trata-se de um exercício de literatura comparada, recorrendo a alguns extratos da obra da referida autora, analisados à luz de alguns textos bíblicos e de consagrados autores nacionais. A partir da experiência de pobreza vivida por Carolina de Jesus, descrita de modo tão pungente em seu diário (Quarto de Despejo), é possível fazer uma relação com os pobres de todos os tempos. A partir da simbologia da “mesa”, farta ou, mais frequentemente vazia, seja no bairro paulista do Canindé dos anos 1950, ou nos tempos bíblicos dos profetas, é possível fazer uma leitura da desigualdade social de todos os tempos, que gera a fome, priva as pessoas de sua dignidade, e marca a vida de grande parte das populações do mundo inteiro. Como afirma o autor: “Em Carolina podemos salientar que os pobres de hoje enfrentam situações muito semelhantes aos de outrora, uma vez que continuam preteridos, seja por sua cor, o lugar onde moram, o papel que catam (ou desempenham) e a educação que não têm”.

    O Sefras, Serviço Franciscano de Solidariedade, constitui uma das expressões da ação social da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil. A Assistente Social e docente Rosângela Pezoti, no artigo intitulado “Promover a justiça sócio ambiental: missão do Sefras – Ação Social Franciscana”, nos propõe uma reflexão sobre as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes na atualidade, que geram os milhões de deserdados que vagam pelas ruas e esquinas de nossos centros urbanos. Esta situação foi enormemente agravada pela Covid-19. Este é o contexto de atuação do Sefras, que busca, através dos trabalhos sociais, trazer um pouco de alívio, humanidade e esperança a tantos irmãos e irmãs descartados pelo sistema de morte. Como afirma a autora, o Sefras age oferecendo o cuidado imediato, quando é o caso, sem deixar de promover a conscientização quanto aos direitos e ao desenvolvimento das potencialidades, mas também investindo na atuação política, em ações de enfrentamento das injustiças, para a transformação da sociedade.

    Qual espiritualidade permite o melhor seguimento de Jesus nos dias de hoje? A partir deste questionamento, o professor Celso Carias nos conduz por um itinerário que nos permite perceber a importância de uma fé e de uma espiritualidade que seja comprometida com a vida. Já no título do artigo, “Solidariedade política: dimensão essencial da espiritualidade cristã”, podemos intuir a necessidade de uma fé que se exprima através da prática do amor, do cuidado, da partilha. O autor nos propõe vários textos dos Padres da Igreja, que denunciaram uma fé desencarnada, alienada e alienante, ignorando o sofrimento dos pobres que vivem ao nosso lado. O caminho proposto é o caminho de Jesus, que tantos homens e mulheres percorreram, unindo fé e vida, transformando a prática religiosa em ação concreta em defesa da vida.

    A família franciscana do mundo inteiro está celebrando, desde 2019, uma série de jubileus, de eventos que foram fundamentais na vida de Francisco de Assis, e que continuam a inspirar e guiar seus seguidores nos dias de hoje. Um destes eventos, como já acenado, é a aprovação da Regra Bulada, escrita por Francisco de Assis, que foi apresentada ao Papa e aprovada, no dia 29 de novembro de 1223. Numa reflexão intitulada “800 anos da Regra de Francisco de Assis”, o professor Aldir Crocoli traz à luz alguns elementos que podem ser referências na vivência do carisma de Francisco. Como ele afirma: “Toda a regra tem sempre um núcleo básico em torno do qual gravitam, quais satélites, valores de maior ou menor significação. Identificar este núcleo em qualquer regra é uma tarefa necessária para sua melhor vivência”.

    Papa Francisco está colocando em evidência o protagonismo dos leigos, das mulheres, das minorias na Igreja. No Sínodo sobre a Sinodalidade, em Roma, leigos e leigas sentaram-se lado a lado com bispos, cardeais e monsenhores do mundo inteiro, contribuindo com suas experiências, sua vivência e suas ideias para os novos tempos da Igreja. E justamente da vivência parte a reflexão intitulada “No Princípio (?) era a Presença (desde sempre)”, que a professora Maria Zelia, Ministra Regional da Ordem Franciscana Secular de Belo Horizonte partilha conosco. Vindo de uma rica trajetória de vida, forjada nos movimentos sociais, no engajamento em defesa da vida e dos direitos, mas também numa vivência cristã e eclesial madura e consciente, Zelia nos indica algumas pistas para uma espiritualidade cristã e franciscana que, ancorada nos valores evangélicos, possa expressar-se no serviço, no cuidado, no compromisso em favor dos menores, dos pequenos, na defesa da dignidade e dos direitos. Como afirma a autora: “Impossível dissociar o ser pobre de Cristo do caminho da cruz. [...]. É este Cristo, humilde e crucificado, que se revela a Francisco e o torna um seguidor apaixonado. Iluminado pela revelação de que, no Crucificado, estão todos e cada um dos crucificados da Terra”.

    Agradecemos a todos os colaboradores desta edição da Revista Grande Sinal. Acreditamos que os artigos aqui compartilhados, nas suas várias áreas de conhecimento, podem oferecer ricas e fecundas perspectivas de reflexão para nossos leitores, indicando possibilidades e caminhos possíveis na vivência de uma fé e uma espiritualidade engajada, que possa se transformar em sinais de vida e de esperança. Boa leitura a todos e todas!

     

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • ESPIRITUALIDADE, EVANGELIZAÇÃO E SOCIEDADE
    v. 77 n. 01 (2023)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

    Nas décadas que se seguiram ao Concílio Vaticano II a Igreja testemunhou um re-despertar de seu elã profético, do anúncio da Boa Nova a partir de um engajamento efetivo nas grandes questões sociais que marcavam a sociedade na segunda metade do século XX. Os grandes dramas da humanidade, como a pobreza, a fome, o recrudescimento dos regimes autoritários, as injustiças em geral, foram temas centrais do magistério e da atuação da Igreja. Contribuiu fortemente para isso a reflexão suscitada pelos documentos do período pré-conciliar, com o Papa João XXIII (Mater et Magistra, 1961), bem como as declarações do próprio Concílio. A Encíclica Populorum Progressio (1967), de Paulo VI, também foi determinante para despertar o interesse e indicar caminhos e meios para a atuação social da comunidade eclesial.

    Fiéis ao espírito da renovação conciliar, surgiram comunidades vivas, comprometidas com o Evangelho, buscando dar respostas coerentes aos inúmeros desafios de uma sociedade em profundo processo de transformação. Algumas conferências episcopais, principalmente aquelas originárias de ambientes marcados por graves mazelas sociais, também deram uma importante contribuição para a reflexão crítica acerca da missão transformadora da Igreja. As Comunidades Eclesiais de Base surgiram na esteira deste esforço de renovação, na busca por “um novo modo de ser Igreja”. A Teologia da Libertação também desempenhou um papel importante nesse processo. As Conferências de Medellín e de Puebla foram de fundamental importância para uma reflexão a partir da hierarquia, no despertar da consciência eclesial para a opção preferencial pelos pobres.

    No Brasil a CNBB também teve momentos proféticos de anúncio e denúncia, como as declarações oficiais de todo o episcopado em defesa da democracia, nos tempos obscuros da ditadura, o clamor profético em favor das populações que sofriam com a fome, com a seca, com a recessão econômica. A atitude evangélica e corajosa de alguns pastores foi punida com a perseguição, com o escárnio e com o exílio. Basta citarmos aqui o franciscano D. Adriano Hipólito, D. Waldyr Calheiros e D. Hélder Câmara, entre outros.

    Na verdade, a opção da Igreja por uma fé engajada, de defesa dos últimos da sociedade, começa com o próprio Jesus. No anúncio do Reino Jesus faz uma clara opção social, privilegiando os sofredores, os pobres, os pecadores, os doentes, os órfãos, as mulheres e as viúvas. O amor do Pai pela humanidade revela-se nas palavras, na atuação e na vida do homem de Nazaré. Pelo batismo o cristão assume o compromisso de colocar em prática seus ensinamentos. Mas essa prática é derivada de uma experiência pessoal, de um encontro íntimo, no âmbito da fé, com o próprio Jesus. Como afirma Papa Bento XVI: “No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus Caritas est,1)”.

    É essa fé autêntica, que nasce do encontro com Jesus, com sua palavra, que impele o cristão para o encontro com o irmão, que o impulsiona para uma prática baseada no amor, na misericórdia, na abertura ao outro. Ao longo de sua história a Igreja sempre foi movida por esse princípio. Animados pela força que irrompe da graça batismal e sob o impulso do Espírito de Deus, cristãos de todos os tempos se esforçaram por transformar sua fé em vida. Além de ir ao encontro dos mais necessitados, também se engajaram concretamente no combate às estruturas de pecado, envolvendo-se em movimentos em defesa da vida e dos direitos, denunciando as injustiças, assumindo compromissos no mundo da política, pelo bem comum.

    Desde as origens ficou claro para a comunidade dos fiéis que não existe autêntica vida espiritual, ascese, mística, sem ação concreta em favor do próximo, sem a caridade, sem um autêntico esforço pela transformação da realidade. Contemplação, espiritualidade, ascese e ação se interpenetram, na busca pela realização do Projeto de Deus, revelado na pessoa de Jesus, de um mundo mais fraterno, justo, solidário.

    Neste atual momento de nossa história, verifica-se um aumento no interesse pela busca por religião, ou, mais especificamente, um despertar para a espiritualidade, em todas as suas vertentes e nas mais variadas denominações religiosas. No entanto, em alguns meios de tradição cristã, católicos ou não, por vários fatores que não nos cabe aqui aprofundar, há alguns desvios na compreensão daquilo que poderia ser entendido por “espiritualidade” e os seus termos correlatos. Após os anos de profundo engajamento social, de luta por direitos e defesa da vida dos mais pobres e deserdados, foi-se verificando uma dicotomia entre teoria e práxis, entre a fé e a vida, entre a espiritualidade, a contemplação, e a ação concreta em prol do projeto de Jesus, do Reino de Deus.

    Nos últimos anos, em função também do recrudescimento das polarizações e dos radicalismos, tornou-se até perigoso tocar em questões sociais ou políticas em alguns ambientes eclesiais. Verificamos hoje uma série de mal-entendidos, colocando em campos antagônicos a contemplação e a ação, a mística e o engajamento político, a espiritualidade e a caridade em favor dos irmãos. É como se fossem realidades independentes, contraditórias. Como já acenamos, é uma forma deturpada de entender uma realidade que faz parte da tradição da Igreja. Fruto de uma fé alienada e alienante, de uma espiritualidade desencarnada, resultado de uma formação cristã frágil e superficial. Tornou-se comum vermos pseudocristãos com a bíblia em uma mão e uma arma na outra, defendendo atitudes e comportamentos que não têm nada de cristão.

    Sem nos aprofundarmos no tema, basta lembrarmos aqui que para os Padres da Igreja, a contemplação não é antagônica à ação, mas é condição prévia e indispensável. Para Orígenes (c.185-253), vida ativa e contemplativa são indissociáveis. É verdade assumida e defendida pela Igreja que uma autêntica experiência de Deus, transforma profundamente a pessoa, e, ao mesmo tempo, transforma o ambiente ao seu redor. A espiritualidade, a intimidade e a proximidade com Deus, redundam, assim, em benefício para todos. Como afirma o teólogo Clodovis Boff: “Gerando um novo ser, a experiência cristã gerará necessariamente um novo agir”. Uma espiritualidade autêntica, uma mística profunda, ancorada nos valores do Evangelho, sustentada pelos dados da tradição e do magistério, atenta aos desafios colocados pelo contexto e pela história, levam consequentemente, a uma ação transformadora da realidade. Essa é a verdadeira espiritualidade, gerada pelo Espírito de Deus, que renova todas as coisas, segundo o modelo do Evangelho.

    No avançar dos anos deste complexo século XXI, o magistério do Papa Francisco talvez seja o melhor exemplo de uma espiritualidade que tenha uma incidência na vida concreta, que traga propostas efetivas de transformação da realidade, trazendo à tona uma série de temas que tocam em questões urgentes, não só para os ambientes eclesiais, mas para toda a humanidade. A sociedade líquida, marcada pelo individualismo, pela autorreferencialidade e pela falta de sentido, é sacudida pela encíclica Fratelli Tutti. A uma economia que coloca o capital acima da vida e das relações, transformando a natureza e o ser humano em objeto de consumo, de compra e venda, o Papa traz a proposta de uma economia mais humana e solidária. As graves e sérias ameaças à vida no planeta, colocando em risco a própria existência do ser humano, são uma oportunidade para o Pontífice escrever a Laudato Si’.

    As intervenções “sociais” de Francisco são parte de um programa de governo, revelado na sua Encíclica Evangelii Gaudium. Ancorado nos ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, Francisco nos convoca a uma visão global das questões que hoje afligem a humanidade. Uma de suas expressões mais importantes, “tudo está interligado”, citada na Laudato Si’, traduz a urgência de novos modelos de comportamento; da instauração de novos paradigmas de relações humanas, sociais e políticas; e de novas formas de interpretar a realidade. Na verdade, a expressão de Francisco, que, na Evangelii Gaudium propõe “uma Igreja em saída”, é um verdadeiro apelo a uma prática eclesial, religiosa, cristã, que de fato assuma, a partir da fé em Jesus, os grandes dramas que afligem toda a humanidade neste primeiro quarto do século XXI: o drama dos refugiados, a questão ambiental, a crise de sentido, as consequências da pandemia, os conflitos bélicos. Francisco denuncia veementemente a globalização da indiferença, e propõe a via do diálogo, da misericórdia, e da convivência harmoniosa, na conjugação e no respeito às diferenças.

    Neste número da Revista Grande Sinal optamos por trazer algumas reflexões que possam contribuir para a compreensão de uma espiritualidade cristã que se revele a partir do compromisso com as grandes causas que afligem a humanidade. A experiência de Deus, traduzida em expressões como espiritualidade e ascese, como já acenado, são fundamentais para, a partir do Evangelho e da tradição da Igreja, iluminar as realidades concretas, possibilitando perspectivas inovadoras, que permitam uma transformação da realidade em favor da vida, da misericórdia e da paz.

    Os grandes mestres da espiritualidade souberam, a partir da intimidade com Deus, agir sobre o mundo no qual estavam situados, trazendo propostas e possibilidades de renovação, reelaborando conceitos no espírito de uma “fidelidade criativa” (Perfectae Caritatis), tornando vivo e atuante o Evangelho no contexto em que viviam. Francisco de Assis foi uma dessas pessoas. Frei Celso Márcio Teixeira nos apresenta um texto sobre a atualidade da espiritualidade franciscana para hoje. Através de uma análise dos elementos que caracterizam a espiritualidade de Francisco, somos conduzidos a uma avaliação e atualização no modo do franciscanismo ser e estar no mundo, no século XXI. Como afirma o autor, “a espiritualidade franciscana é atual à medida que procura traduzir o Evangelho para a vida concreta”. Entre os elementos constitutivos da espiritualidade franciscana, frei Celso destaca a itinerância, a identificação com os pobres, o engajamento em prol da Casa Comum, a promoção da paz, contra as armas, a fraternidade universal. Como sublinha o autor, o carisma franciscano é universal, pois, apesar de circunscrito ao contexto medieval, Francisco de Assis viveu e ensinou valores que valem e perduram por séculos. Papa Francisco, em seu magistério, é a melhor prova disso.

    Hoje as ruas dos centros urbanos, principalmente nas grandes cidades, tornaram-se a moradia habitual de um grande número de pessoas. Mulheres, crianças, idosos, pessoas de todas as idades amontoam-se nos bancos de praças, marquises, viadutos e calçadas, dormindo ao relento. Mais do que despertar compaixão e misericórdia, para muitas pessoas a presença dos pobres assusta, incomoda. Em alguns casos, buscam-se todos os meios para mantê-los longe, para torná-los invisíveis, para distanciá-los das pessoas ditas “normais”. Criou-se até um neologismo para expressar essa fobia, esse verdadeiro horror aos pobres: a “aporofobia”. Num instigante artigo sobre o tema, Jéssica Lima nos ajuda a entender a gênese e o significado desta expressão, que retrata esta triste realidade, que desumaniza a tantos irmãos que já vivem numa situação de desespero e abandono. Trata-se de uma verdadeira patologia social, como afirma a autora, que se expressa não só na repulsa aos pobres, mas também através de uma verdadeira “arquitetura hostil”, criando entraves para que essa população possa ter acesso ao mínimo de proteção nos espaços públicos, como os bancos de praças, espaços sob os viadutos, marquises de prédios e igrejas. As possibilidades para a superação desse desvio de comportamento humano, afirma a autora, passam pela ética do cuidado, pela educação inclusiva das novas gerações, pela luta por direitos e pela defesa da dignidade de todas as pessoas. Além do reforço do sistema democrático.

    A Revista Grande Sinal publica artigos de mestres e doutores. Neste número, no entanto, abrimos uma exceção. O jovem Márcio Bernardo, que partilha conosco um artigo sobre a Economia de Francisco e Clara, foi um dos mil jovens que tiveram o privilégio de encontrar-se com o Papa Francisco, em setembro de 2022, em Assis, para participar do evento “Economia de Francisco”. Márcio atua no campo da economia, é membro da Ordem Franciscana Secular e é engajado em sua comunidade de fé. Seu texto nos apresenta os princípios daquilo que o Papa Francisco propõe, para uma economia que esteja a serviço do ser humano, e não a serviço do acúmulo do capital, e, consequentemente, da divisão e da morte. A inspiração do Pontífice para convocar este encontro na cidade de Assis, além da fé cristã, é o próprio São Francisco. Na radicalidade evangélica, fazendo-se pobre e servo dos pobres, ele indicou caminhos concretos para a renovação das estruturas eclesiais, políticas e sociais de seu tempo. No artigo, Márcio Bernardo partilha com os leitores os principais destaques deste verdadeiro movimento em prol de uma nova economia global. Também destaca a presença e a atuação do movimento no Brasil, lembrando que a delegação brasileira foi a segunda maior delegação presente ao encontro em Assis, atrás apenas da anfitriã, a Itália. O evento em Assis não foi apenas um encontro. No mundo inteiro a economia de Francisco e Clara já está acontecendo, tornando-se um verdadeiro movimento de transformação. Há um apelo e um esforço das novas gerações por criar uma economia em favor da vida, de partilha, de solidariedade, ecológica e em harmonia com todas as formas de vida.

    A profecia, embora olhe para o futuro, é elaborada a partir do presente. Este é o fio condutor da reflexão do professor Carlos Frederico, exegeta, sobre a pregação social dos profetas. Inserido num dado momento histórico, social, político e econômico, animado pela experiência da fé, o profeta presta um duplo serviço: ao povo, a quem anuncia e denuncia, e a Deus, de quem é o mensageiro. O profeta, segundo a experiência bíblica, é alguém profundamente inserido na realidade popular, conhecedor da vida, das mazelas e das esperanças da população a quem serve. Mas é animado por uma profunda experiência de intimidade com Deus. Justamente por causa dessa experiência, ele consegue ver o que outros não veem, tem uma visão global e crítica da situação. Dessa forma ele pode denunciar planos escusos, interesses pessoais e subterfúgios que os outros não veem. Por isso o profeta incomoda e os poderosos tentam eliminá-lo. Mas o profeta também convoca à mudança, à transformação de vida, à conversão. Jesus é o modelo do profeta, que faz emergir sua autoridade, sua força de denúncia e anúncio a partir da intimidade com o Pai, e da vivência da realidade do povo e com o povo. A partir da análise de vários casos do profetismo bíblico, o autor traz propostas que contribuem para iluminar a realidade atual.

    Ao apresentar a Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco destacou que Francisco de Assis foi o modelo e inspirador da fraternidade universal que a encíclica propõe. O professor da Pontifícia Universidade Antonianum, Martín Carbajo Núñez, nos apresenta um artigo sobre a inspiração franciscana da Fratelli Tutti. No texto, o autor discorre sobre o modo como o jovem de Assis, em sua experiência evangélica, coloca como prioridade em sua vida as relações fraternas. O artigo expõe também as convergências entre a concepção franciscana de fraternidade e a Encíclica do Papa. No longo e trabalhoso processo de discernimento do chamado evangélico, foi ficando evidente para Francisco de Assis que o Senhor o chamava para ser Irmão Universal. Inspirada na trajetória e no carisma de Francisco, a Fratelli Tutti propõe um modelo de sociedade onde sejam superadas as polarizações, os radicalismos autorreferenciais, os conflitos entre pessoas e nações, e que seja feito um esforço coletivo, entre os homens e mulheres de boa vontade, na criação do que o Papa denomina “cultura do encontro”. O Pontífice cita o compositor e poeta brasileiro Vinícius de Morais: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (n. 215). Se há um homem que soube pautar sua vida pela cultura do encontro, este foi Francisco de Assis.

    Neste ano a CNBB apresentou como tema da Campanha da Fraternidade a citação de Mateus 14, 16, “Dai-lhes vós mesmos de comer”. O drama da fome é uma triste e nefasta realidade no Brasil e no mundo. É das mais claras evidências do quanto a humanidade desviou-se de seu caminho de fraternidade, cuidado e compaixão. A fome não é causada pela falta de alimentos, mas pelo seu acúmulo. Esta realidade é muito clara no Brasil, onde há uma multidão que não tem o necessário para alimentar-se diariamente, num país que é um dos maiores exportadores de alimento do mundo. Frei James Girardi apresenta uma reflexão sobre o tema da Campanha, na perspectiva da dimensão social da evangelização. A Campanha da Fraternidade, a cada ano, convoca os cristãos a refletirem sobre a dimensão social e política de sua fé, sobre o engajamento, que deriva de uma fé madura, adulta, que é fruto também de uma conversão ao projeto de Jesus. O fato de a Campanha da Fraternidade ser atacada a cada ano por grupos minoritários dentro da Igreja é a prova da dificuldade de alguns cristãos de perceberem a importância da convergência entre fé e vida, entre anúncio e denúncia profética, entre celebração e ação.

    Esperamos que as reflexões aqui partilhadas por nossos colaboradores possam ser de proveito aos nossos leitores e leitoras. Que possam contribuir para uma reflexão que conduza a uma espiritualidade autêntica, alicerçada nos valores do Evangelho, e que transforme a nossa vida e a vida de nossas comunidades.

     

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • MULHERES, SINODALIDADE E LAICATO
    v. 76 n. 02 (2022)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

    As rápidas transformações pelas quais a humanidade tem passado nos últimos anos têm impactado profundamente o modo como as pessoas se colocam diante do mundo, dos outros, de si mesmos, com sérias consequências nas relações interpessoais, políticas, religiosas. Como bem evidencia o Papa Francisco, estamos em meio a uma verdadeira “crise antropológica e socioambiental”. A trágica experiência da Pandemia afetou a todos, deixando sequelas que vão perdurar por muito tempo. Quando alguns cogitavam que, talvez, pudéssemos sair desta terrível experiência “melhores” do que éramos, eis que diante de nós se desenrola uma guerra, que aos poucos vai envolvendo todas as nações, com consequências imprevisíveis. O conflito Rússia-Ucrânia é apenas o sintoma de uma realidade muito mais preocupante, que se revela no recrudescimento da violência, da intolerância, da xenofobia, alimentada pela ascensão dos regimes comandados por líderes fascistas, totalitários, de ultradireita, em várias partes do globo.

    As tragédias climáticas acentuam-se e tornam-se mais graves a cada ano, causando destruição e morte. A possibilidade de um cataclisma ambiental de proporções globais faz-se cada vez mais real. Apesar de tudo, muito pouco de concreto se faz. Percebe-se que há muitos interesses em jogo, e que ninguém está disposto a mudar de fato um estilo de vida que beneficia a poucos, que se assenta em grande parte na dilapidação do meio ambiente, em relações injustas, na ganância, mesmo ao alto preço de colocar em risco a existência do planeta.

    No Brasil, nos últimos anos, para além da Pandemia, particularmente as classes mais empobrecidas e fragilizadas continuaram sendo as principais vítimas do descaso dos governantes. O drama da fome atingiu mais de 33 milhões de pessoas. As mulheres, os idosos e as crianças foram os que mais sofreram. A necropolítica avançou, propondo e aprovando leis que atentam contra a vida e colocam em risco a segurança de todos, como a facilitação na liberação do porte de armas aos civis, o desmonte do sistema de inclusão e de proteção social, entre outros. O desemprego atingiu índices altíssimos. Negros, quilombolas, mulheres, indígenas, população LGBTQIA+ tiveram seus direitos negados. Nas políticas e projetos do Governo imperaram o negacionismo e o ataque às ciências, às universidades e à cultura em geral; a destruição desenfreada dos biomas, florestas, rios, animais, em prol dos interesses de poucos.

    A religião, como parte integrante da sociedade, não poderia passar ilesa nesta insana situação. Na sociedade pós-moderna, em que campeia o secularismo, com um número cada vez maior de pessoas “sem religião”, na qual se alardeia aos quatro ventos “o fim das religiões”, em se tratando de eleições, nunca o nome de Deus foi tão evocado. Cristãos, ou supostos cristãos, apareceram, em nome da fé, defendendo propostas nefastas, fazendo apologia à tortura, atacando a CNBB, os bispos e até o Papa Francisco. Numa verdadeira guerra santa, igrejas, eventos religiosos, padres e pastores, foram promotores da desinformação, da disseminação de fake news, sob o pretexto da defesa da família tradicional, dos bons costumes, contra o comunismo, o aborto, a ideologia de gênero, etc. Até satanás foi evocado como cabo eleitoral. Ao invés de nos tornar pessoas melhores, a religião tem sido instrumentalizada para reforçar preconceitos, para disseminar o medo e o ódio, fortalecer a alienação, para separar e criar muros, no lugar de criar laços e gerar comunhão. Como afirmava Jonathan Swift, “Nós temos a religião suficiente para nos odiarmos, mas não para nos amarmos uns aos outros”.

    O resultado do primeiro turno das eleições de 2022 revelou um Brasil flertando com a extrema direita. Mas deixou evidente também uma realidade muito mais complexa e desafiadora. Constatou-se que, em algumas localidades praticamente abandonadas pelo poder público, onde impera a criminalidade, a pobreza, o desemprego, mas onde as igrejas evangélicas são onipresentes, os candidatos mais conservadores e de extrema direita foram os mais votados. Foram alçados ao poder homens e mulheres com um conhecido histórico de ataque aos direitos humanos, de corrupção, de conchavo com garimpeiros e madeireiros, sem escrúpulos e sem nenhum compromisso com as minorias e os pobres, e muito menos com a moral e os bons costumes que tanto alardeiam. Por sua vez, os discursos dos candidatos que se comprometeram com a defesa de direitos, que acenaram com a possibilidade de mudança da realidade através do voto, da democracia e da atuação política, foram inócuos. Constatou-se, talvez tarde demais, a força do discurso religioso tradicional, manipulado de modo hábil pelos setores mais conservadores, em detrimento da política em favor do bem comum e da ética verdadeiramente evangélica. Mais do que anúncio do amor e da misericórdia, da compaixão e do cuidado, pregados e vivenciados por Jesus, o fundamentalismo religioso, muito bem manipulado por cristãos reacionários, evangélicos ou setores católicos tradicionalistas, foi o grande protagonista.

    A extrema direita tupiniquim soube se valer muito bem dos valores religiosos da população e do conservadorismo para camuflar seus interesses. Mas o caso do Brasil não é isolado. O mesmo ocorreu e continua a ocorrer na Hungria, na Polônia, nos Estados Unidos e outros países. Recentemente na Itália assumiu o poder a Primeira Ministra neofascista Georgia Melloni, herdeira de Mussolini, eleita alardeando ser a candidata ideal, por ser “mãe, mulher e cristã”.

    Tal constatação não deve nos fazer desacreditar da religião como força de transformação. Esta, como o pleito eleitoral deixou evidente, continua a ser um importante elemento, que dá sentido e alento à vida das pessoas, principalmente aos mais pobres, abandonados pelo Estado, deixados à própria sorte, talvez desiludidos com o sistema político tradicional. Mas esta força deve ser trabalhada e direcionada na luta por direitos, no esforço por transformar a realidade. Como acenamos, é uma realidade muito complexa, e só uma análise séria e profunda poderá trazer algumas respostas. O Evangelho nos desafia sempre, pois exige um olhar atento à existência, a partir de uma hermenêutica que ilumine a realidade e a transforme, baseados na vivência dos princípios do Reino. Os últimos acontecimentos na política nacional mostraram o quanto a Palavra pode ser manipulada, deturpada, distorcida em função de interesses perversos e desumanos.

    Contrastando com essa situação execrável, por sorte encontramos ainda muitas pessoas de bom senso, movidas pela ética e pelos verdadeiros valores humanos, que não aceitam este discurso. Seja no mundo da cultura, no mundo da política, nas Igrejas cristãs, nos meios intelectuais, ou mesmo em meio às pessoas mais simples, brotam sementes de oposição aos projetos de morte. O Papa Francisco se destaca neste cenário, com sua voz firme e forte condenando todas as formas de intolerância, desrespeito à vida e à dignidade, a destruição do meio ambiente, propondo uma nova forma de pensar e agir em relação às mais importantes e urgentes realidades humanas. Seus pronunciamentos, oficiais ou não, vão na linha do diálogo, da fraternidade, do fortalecimento dos laços entre todas as pessoas. A Sinodalidade perpassa todo seu pontificado.

    Nesta edição da Revista Grande Sinal optamos por refletir a respeito da Sinodalidade a partir do ponto de vista das mulheres. Embora haja consensos na compreensão de expressões e conceitos teológicos, certamente há nuances próprias, que só a partir de um determinado lugar teológico podem ser tematizadas e trazidas à tona. Por isso queremos, neste número, ouvir o que as teólogas têm a dizer a respeito da Sinodalidade. Certamente o tema toca em questões sensíveis, como o poder, o patriarcado eclesiástico, o clericalismo, o machismo, a luta pelo protagonismo de leigos e leigas.

    Este número se abre com um artigo que discute o laicato na perspectiva do processo sinodal. A autora, a teóloga Alzirinha Souza, nos provoca a refletir, não apenas sobre o laicato, mas sobre o clericalismo, verdadeira “praga na Igreja”, denunciada insistentemente pelo Papa Francisco. Numa Igreja marcada pelo suposto protagonismo masculino, o clericalismo é muito mais nocivo e menos evangélico quando atinge as mulheres. Como afirma, é necessário refletir de modo mais profundo, de forma a pensar as “demandas próprias do laicato a partir daquilo que ele efetivamente é e em qual(ais) espaço(s) específico(s) elas podem colaborar com a tessitura da sinodalidade na Igreja”. É urgente mudar a “cultura clerical” vigente na Igreja, para uma “cultura de comunidade que se compreenda como um todo, como uma unidade que caminha em diálogo e escuta a partir e em torno da pessoa de Jesus”.

    O fundamento da Sinodalidade, já desde as origens da Igreja, foi sendo aos poucos subvertido, em função de uma estrutura patriarcal, autoritária e verticalista. É sobre isso que discorre o artigo da professora Eva Aparecida Resende. Partindo dos fundamentos históricos e bíblicos, a autora faz um percurso até a atualidade. Na atuação do magistério, marcadamente a partir de meados do século XX, a importância da contribuição das mulheres foi sendo cada vez mais afirmada. Mas, principalmente após a “volta à grande disciplina”, a partir dos anos 1990, houve um avanço muito tímido no reconhecimento da importância da atuação das mulheres na Igreja, nos movimentos, pastorais, paróquias. A situação é mais grave em se tratando da participação das mulheres nas instâncias de decisão da Igreja, nos institutos de Teologia, como discentes e docentes. Papa Francisco tem dado sinais claros de que esta realidade não condiz com o Projeto de Jesus para a Igreja no mundo, e tem tomado medidas concretas para mudar, aos poucos essa situação.

    Ao longo da história, as mulheres, por mais que tenham sido relegadas à “invisibilidade”, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da Igreja. Algumas, mesmo condicionadas pelo contexto em que viviam, conseguiram dar uma contribuição específica, e se destacaram, a ponto de terem sua importância reconhecida ao longo da história. A professora Lícia Pereira, doutora em Espiritualidade pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, nos apresenta algumas destas mulheres, que, por sua contribuição à Igreja e ao projeto de Jesus, foram inseridas no rol das “doutoras da Igreja”. Certamente não podemos, no contexto em que essas mulheres atuaram, nos referir à Sinodalidade como nos referimos na atualidade. Mas, como afirma a autora, “cada uma no próprio contexto cultural e eclesial, de acordo com a própria personalidade, vocação e missão, viveu plenamente o seu significado”.

    A necessidade de se repensar a evangelização a partir das culturas, levando em consideração a piedade popular, tendo como alicerce a Sinodalidade, é o tema do artigo da professora Vera Maria Boing. Nesse processo, a presença de Maria ocupa um lugar de destaque, como modelo de fé comunitária, ativa e participativa, movida pela solidariedade e pelo serviço. Como afirma a autora, “Maria, mulher, Mãe de Deus, Mãe da Igreja, carrega a força de gerar uma nova evangelização, de sustentar e fortalecer uma comunidade eclesial sinodal”. Maria é referência do serviço, da humildade, da escuta, do diálogo e da conversão a um modelo eclesial “onde todos sintam-se acolhidos e incluídos como parte do povo de Deus”.

    Apesar da fome ser um espectro que ainda ronda boa parte da humanidade, incluindo o Brasil, estamos chegamos num momento da história no qual, em muitos países, mais pessoas morrem por doenças relacionadas à superalimentação, como diabetes, obesidade, hipertensão, do que de fome. A professora e doutora Aleluia Heringer, no seu artigo intitulado “Para se alimentar basta a terra!”, nos convida a refletirmos sobre a forma como nos alimentamos. Comer, muito mais do que uma necessidade física, remete à metáfora da comunhão, simbolizada no convívio, no estar juntos, na comensalidade. A atual crise ecoambiental exige de nós repensarmos nossos paradigmas alimentares, nossas relações com a natureza, com os animais. É um ato de responsabilidade, primeiro com a nossa própria saúde, mas também de cuidado com o planeta. Somos convidados a pensarmos “para além do cardápio”.

    Uma das mulheres mais conhecidas das Sagradas Escrituras, mas ao mesmo tempo mais injustiçada é Maria Madalena. A partir do comentário dos Apócrifos, Frei Jacir de Freitas Faria, especialista no tema, nos ajuda a retirar as “poeiras do tempo”, que aos poucos esconderam o protagonismo e importância dessa mulher para a Igreja das origens. Em se tratando de uma publicação em que as mulheres têm o protagonismo, nada mais justo do que resgatarmos o papel central desta mulher na Igreja, líder entre os apóstolos, testemunha da ressurreição, inspiradora das mulheres no esforço por uma sociedade e uma Igreja mais igualitária.

    Nas origens da Igreja, só havia leigos e leigas. Não havia templos, não havia estátuas ou imagens, nem sacerdotes ou sacrifícios de animais, nem vestes diferentes para os ministros, nem altar. Os cristãos da comunidade nascente não precisavam destes aparatos para celebrar sua fé no ressuscitado e para colocar em prática o projeto do Reino. Além de buscarem se distanciar dos cultos pagãos e do judaísmo. O desenvolvimento da Igreja ao longo da história e sua expansão no mundo greco-romano, exigiram que alguns destes elementos fossem, aos poucos, incorporados ao culto e à liturgia. Mas a hierarquização, a ascensão do clero e sua imersão nas complexas instâncias do poder eclesiástico, foram se reforçando a partir da aproximação da Igreja com as instâncias do império. A Igreja constantiniana colocou leigos e leigas em situação subalterna em relação ao clero. Desde então, somamos mais de 1.700 anos de caminhada de um modelo eclesial clericalista, patriarcal, hierárquico e excludente.

    Nas últimas décadas, com o início da derrocada do modelo constantiniano de Igreja, os leigos começaram a fazer-se ouvir. Mas ainda há uma longa estrada a ser percorrida. Não obstante todo o esforço do Papa Francisco na linha da Sinodalidade, sabemos que há resistências. Mentalidades e ideias arraigadas, comportamentos e modos de pensar e agir visceralmente incrustrados durante milênios na mente das pessoas e das instituições, relações de poder e de privilégios, por mais sagradas que possam parecer, não são transformadas em poucos anos. Como vimos na realidade das eleições no Brasil, nem sempre a religião, as estruturas, o culto, servem ao Evangelho, à vida plena, ao projeto de Jesus. Ao propor o caminho da Sinodalidade, o Bispo de Roma convida a todos, leigos e leigas, membros do clero, cristãos católicos e não, mulheres e homens de boa vontade, a caminhar juntos, a se abrirem ao diálogo e à escuta mútua, ouvindo as vozes que podem nos indicar novos e criativos meios de vivenciar o Evangelho, num processo no qual impere a comunhão e a partilha. Mais do que um processo de mudança, trata-se de uma verdadeira “conversão”. É um processo que se dá “caminhando”, em que cada um e cada uma pode e deve dar sua contribuição, indicando as virtudes e as fragilidades da Igreja, suas forças e suas debilidades, numa crítica construtiva, honesta, a um sistema plurissecular que precisa ser revisto, transformado, em prol da vida e do bem de todos.

    Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • ESPIRITUALIDADE, HUMANISMO E SOLIDARIEDADE
    v. 76 n. 01 (2022)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

    Os dois últimos anos talvez entrem para os anais da história como os anos mais assustadores, inseguros e tristes que os tempos modernos já testemunharam. A pandemia de Covid não poupou nenhum canto do planeta. A força quase incontrolável de um vírus invisível colocou a humanidade de joelhos. As imagens espalhadas pelos meios de comunicação, ao mesmo tempo em que contribuíram para alertar a todos do perigo, também espalharam o terror, anunciando diariamente “o avanço da peste”, com o crescente número de mortos, ilustrado pelas cenas aterradoras de doentes amontoados nos hospitais, caixões empilhados, mortos insepultos. A lenta, mas decisiva batalha pela descoberta da vacina revelou o que de melhor a humanidade é capaz de produzir, quando o conhecimento científico e os mais nobres ideais caminham lado a lado, na busca pelo bem comum.

    O ano de 2022 iniciou-se trazendo consigo um alentador otimismo, na esperança de que a situação iria mudar para melhor. Com o atenuar-se da pandemia, com o avanço da imunização, parecia que a vida iria aos poucos voltar ao seu ritmo “normal”. No entanto, já nos primeiros meses do ano, a ganância, a falta de diálogo e a sede de poder e domínio sem limites deram origem a um sério e assustador conflito bélico, acendendo o alerta vermelho do risco de uma hecatombe de consequências imprevisíveis. Por outro lado, a natureza também continua a clamar, alertando que o tempo para evitar uma catástrofe climática global está se esgotando: tragédias ambientais se repetem, causando destruição e morte, sobretudo entre os mais vulneráveis. Em muitos países, inclusive no Brasil, testemunha-se o recrudescimento de comportamentos desumanos, de racismo, violência, aporofobia, xenofobia, com a ascensão de grupos de extrema direita, alimentando e disseminando discursos de ódio, de apologia às armas e à violência contra as minorias, de autoritarismo e de ameaças à democracia. Os avanços da tecnologia, que tantos benefícios podem trazer à humanidade, às relações, criando laços fraternos e solidários, são empregados cada vez mais a serviço da mentira. Aos poucos parece que fica cada vez mais evidente que o vírus mais perigoso e letal não é o vírus da Covid, mas é o próprio ser humano.

    É papel da teologia oferecer subsídios que possam contribuir para uma visão crítica da realidade, do contexto histórico em que se está situado, a partir dos valores e princípios evangélicos que norteiam nossas convicções. Também deve indicar pistas para a ação, a fim de promover a transformação da realidade, pautada por valores cristãos, éticos, humanos, que possam gerar vida, dignidade e alimentar a esperança. Nesse sentido, a espiritualidade é uma importante aliada na construção de uma sociedade onde solidariedade, humanidade, cortesia, respeito, diálogo, não sejam apenas belas e educadas expressões, mas constituam-se em atitudes que transformem a realidade.

    Neste número da Revista Grande Sinal trazemos algumas reflexões que, despretensiosamente, pretendem contribuir para a reflexão sobre alguns elementos que são imprescindíveis para a evidenciação e o fortalecimento dos mais preciosos e inalienáveis valores que constituem a pessoa humana. Valores que são inegociáveis, sob o risco de perdermos a essência daquilo que nos identifica como “seres humanos”.

    A escuta, como capacidade de sair de si mesmo, de ir ao encontro do outro, sem esperar que o outro se configure ao meu modo de ser e de pensar, é um dos elementos inalienáveis para um sadio, solidário e maduro desenvolvimento humano. A escuta possibilita o diá-logo, a troca de saberes, o crescimento mútuo. É através da escuta sincera, desarmada, atenta e cordial, que conseguimos derrubar muros e construir pontes. Deixamos nossa ilha, para nos constituirmos em arquipélagos. Professor Adenilson Quirino nos brinda com uma excelente reflexão sobre a escuta como capacidade essencial para que possamos “caminhar juntos”, para juntos construir um mundo de relações, de comunicação, onde o diálogo e a compreensão sejam os objetivos maiores.

    O exercício de ir ao encontro do diferente, desarmado, disposto ao conhecimento mútuo, ao diálogo, em vista da busca do bem comum, também tem sido uma das tônicas do pontificado do Papa Francisco. O professor frei Francisco Fresneda, da Universidade de Múrcia, Espanha, faz uma análise das visitas do Bispo de Roma aos três grandes líderes do mundo islâmico, no Marrocos, no Egito e em Abu Dhabi. Tais visitas assinalam um esforço sincero e concreto de estender as mãos, de construir vias, de juntar forças em vista de valores comuns, para que as religiões se constituam em canais de fraternidade, não em barreiras de separação. Nesse sentido, o Francisco de Roma, 800 anos depois, repete o gesto do Francisco de Assis, que, em 1219, em plena cruzada, desarmado e pobrezinho, foi ao encontro do Sultão do Egito, para anunciar-lhe a Paz e o Bem.

    Uma consciência que vai aos poucos se tornando comum é de que as graves questões ambientais que ameaçam a sobrevivência da humanidade não têm a ver só com o meio ambiente, com a “ecologia”, mas estão profundamente interligadas com o modo como o ser humano se coloca no mundo, como se relaciona entre si, com os bens, com as realidades e, consequentemente, com toda a criação. Nesse sentido torna-se cada vez mais evidente que formamos parte de um complexo muito mais extenso e grandioso. O professor Martín Carbajo, frade franciscano, docente em várias universidades da Europa e nos Estados Unidos, no seu artigo intitulado “Tudo está conectado”, nos ajuda a entender como as inter-relações são fundamentais para o ser humano assumir um novo modo de ser, frente ao mundo e frente à própria humanidade. Como afirma o Papa Francisco, “Só unidos e cuidando dos mais frágeis podemos vencer os desafios globais”. À luz da encíclica Laudato Si’ e das intuições do teólogo Romano Guardini, o autor se debruça sobre a necessidade de um novo paradigma relacional, que permita superar a atual crise socioambiental e ajude a estabelecer relações interpessoais autênticas. Temos que passar da “globalização da indiferença”, à certeza de que somos uma única família, onde o humano conviva em harmonia com todas as realidades que constituem o mundo.

    Desde o Concílio Vaticano II a questão do papel dos leigos e leigas na Igreja foi colocada em pauta. As discussões, estudos, polêmicas que se seguiram, contribuíram para a crescente conscientização de que o leigo não é um “ajudante do padre”, nem lhe é submisso, mas que tem um lugar que lhe é próprio na comunidade de fé. O artigo do professor Jefferson Machado nos permite conhecer a trajetória do laicato na Idade Média, particularmente sob a ótica dos mendicantes franciscanos, e o modo como o laicato passou a ser visto no decorrer da história. Certamente um longo caminho ainda deverá ser percorrido, até que se consiga trazer à tona toda a clareza da importância do lugar do leigo e da leiga, que foi intuída pelos padres conciliares, mas que na prática esbarra em tantas barreiras. Basta recordarmos as duras palavras do Papa Francisco, denunciando a “praga do clericalismo”, que tocam num dos pontos mais sensíveis, que impedem leigos e leigas de assumirem o lugar que, por direito, lhes compete na Igreja.

    Sem dúvida o santo negro de maior devoção no Brasil é o franciscano São Benedito. Frei Alvaci Mendes da Luz, que concluiu na PUC-SP sua tese de mestrado sobre “a santidade franciscana de cor”, faz um sobrevoo sobre a devoção a santos franciscanos negros na Itália, de modo particular na Sicília, nos séculos XV-XVI, e o modo como a devoção a estes santos espalhou-se pelos domínios ibéricos. Uma análise feita a partir de um sério aporte documental, que nos permite perceber a importância da pesquisa histórica no resgate das raízes da religiosidade no Brasil, na preservação da memória, dos valores culturais e da fé do povo.

    Conhecer as Bem-aventuranças é entrar em contato íntimo com o núcleo do ensinamento de Jesus. O professor José Abel de Souza partilha conosco uma profunda e bem articulada reflexão onde nos apresenta as Bem-aventuranças em Mateus e Lucas, como possibilidade de um novo modelo de existência, a partir da proposta de Jesus de Nazaré, alicerçada na lógica do amor.

    Em 2019 o Papa Francisco lançou o Pacto Educativo Global. Em 2021 celebramos os 100 anos do nascimento de Paulo Freire, digníssimo Patrono da Educação Brasileira. A Campanha da Fraternidade, fazendo eco a estas celebrações, e também celebrando os 40 anos da Pastoral da Educação no Brasil, propôs como tema: “Fala com sabedoria, ensina com amor”. O Professor Robson Ribeiro de Oliveira, que atua diretamente no “chão da escola”, experimentando na própria pele os desafios, as alegrias e as esperanças no campo cotidiano da educação, nos brinda com uma breve reflexão sobre o tema.

    Vivemos momentos sombrios no Brasil e no mundo. No entanto, sempre há esperança, quando se acredita no bem comum, na dignidade e no valor da pessoa humana. Animados pelas celebrações pascais, que nos fazem experimentar a certeza da vitória sobre a morte, podemos nos inspirar na expressão do grande Paulo Freire: a verdadeira esperança é “esperançar”. Que os textos, as reflexões e demais contribuições tão generosamente partilhados por nossos colaboradores, a quem cordialmente agradecemos, contribuam para nos indicar caminhos, sendas, trilhas, a fim de que possamos nos transformar em “acendedores de esperança”.

    Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • FRANCISCO, PROFETA DA ESPERANÇA
    v. 75 n. 02 (2021)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

    De todas as virtudes de que podemos lançar mão para levar em frente nossa dura e, por vezes perigosa existência, talvez a mais urgente nesses tempos sombrios seja a Esperança. Saindo aos poucos desta terrível experiência de aflição, angústia e morte, que levou toda a humanidade à beira do colapso, algumas luzes se acendem no fim do túnel. Apesar de todo o negacionismo que ainda persiste, cientistas e pesquisadores estão conseguindo respostas cada vez mais eficazes para debelar o vírus da COVID-19. No Brasil, graças ao Sistema Único de Saúde, as vacinas foram sendo distribuídas, de modo que podemos, aos poucos, sonhar com uma vida que devagar volta ao seu “normal”.

    Como sempre se ouviu nestes tempos “pandêmicos”, vamos ter que nos adaptar a um “novo normal”. Certamente essa nova etapa de vida na qual toda a humanidade está entrando, vai exigir muita resiliência, cuidado, solidariedade, respeito, cortesia, tolerância. Será que estamos

    preparados para uma vivência tão humana? Se, como afirmavam alguns antes da Pandemia, estávamos vivendo numa “crise do humano”, certamente esta crise se acelerou e se acentuou. A Pandemia escancarou uma série de situações que contribuíram para agravar o sofrimento

    de tantas pessoas: a injusta distribuição de renda, gerando pobreza, miséria, abandono; os interesses escusos e mesquinhos, de pessoas e organizações que se aproveitaram da dor, do sofrimento e até da morte de tantos para enriquecer. Testemunhamos o melhor e o pior do ser

    humano. Seja como for, é certo que a vida não vai continuar no mesmo ritmo de antes, como se nada tivesse acontecido.

    O período pós-Pandemia também já se desenha difícil. Muitos perderam suas referências familiares. Outros tantos perderam seus empregos, foram incapacitados de pagar suas contas, de manter seu meio de sobrevivência, impossibilitados de continuar seus estudos. O futuro, para muitos, é de insegurança e incertezas.

    Como todos os demais setores da sociedade, a Igreja também se viu obrigada a buscar meios para continuar exercendo de modo satisfatório a sua missão de anunciar, de suscitar esperança e alimentar a fé. Passadas as improvisações e arranjos apressados de muitas paróquias nas missas e celebrações online e via youtube, agora se espera que aos poucos os fiéis retornem às celebrações presenciais. Vieram à tona, no entanto, questionamentos que vão muito além da participação, virtual ou presencial, nas celebrações. A teologia, a espiritualidade, a evangelização, as pastorais, foram seriamente questionadas nestes tempos difíceis. Qual o papel da Igreja enquanto sinal do Reino de Deus neste mundo, quando tudo parece perder o sentido, quando a vida, em todo o mundo, é seriamente ameaçada? Como os pastores podem fazer-se presentes na vida das pessoas, sendo instrumentos de esperança, de  anúncio de boa-nova, de misericórdia? Como a Igreja pode contribuir para que, em todos os setores, haja mais humanidade, justiça, tolerância, respeito, igualdade? Como contribuir para que as pessoas, em especial as mais frágeis, encontrem um alento e um sentido para a própria existência? Qual o papel da comunidade cristã frente à grave crise ambiental? São apenas alguns questionamentos urgentes, aos quais a Igreja, através de seus ministros, teólogos e todo o povo cristão não podem deixar de dar respostas coerentes.

    Diante de toda essa situação, o Papa Francisco tem sido uma voz profética, clamando a humanidade a assumir novos rumos, a novas formas de se organizar, a partir daquilo que nos é próprio: sermos, de fato, “humanos”. Já antes da eclosão da COVID-19 o Bispo de Roma aparecia como uma das vozes mais autorizadas na sociedade, a apontar caminhos, a iluminar as mentes e os corações na busca de saídas e possibilidades diante dos sérios problemas que enfrentamos nestas primeiras décadas do século XXI.

    A Pandemia veio reforçar essa liderança. Como verdadeiro arauto da esperança, no gesto realizado na Praça de São Pedro, naquela tarde chuvosa do mês de março de 2020, caminhando lentamente, quase trôpego, solitário, em direção ao Cristo crucificado, indicou-nos um paradigma da realidade que estamos vivendo. Nos tempos de trevas, diante das tempestades que ameaçam nos fazer sucumbir, há de se buscar a força, a inspiração e a esperança naquele que enfrentou e venceu a morte e ressurgiu para a Vida, para que todos tivessem a Vida. O gesto silencioso, mas ao mesmo tempo profundamente eloquente, fez-nos e continua a fazer-nos pensar sobre nossas opções fundamentais, enquanto seres humanos e enquanto cristãos.

    Os desafios e os conflitos humanos foram profundamente acentuados durante a Pandemia. Mas vivemos de esperança. Sem esperança a vida não tem sentido. É em nome da esperança que fazemos projetos, que alimentamos sonhos. Os passos ousados que damos em direção ao desconhecido só são possíveis se movidos a partir da dinâmica da esperança. A Pandemia despertou, nas pessoas de boa vontade, o desejo de construir um mundo diferente. Não à toa, numa entrevista sobre os primeiros lugares que as pessoas pretendem voltar a frequentar após toda essa tragédia, as igrejas foram os mais citados. Há uma sede de espiritualidade, há uma busca de respostas, há um anseio de sentido, que o bem-estar material, a lógica do lucro e do prazer, não satisfazem.

    No âmbito intraeclesial, o papa tem se esforçado por reformar uma Igreja que precisa responder aos prementes apelos do século XXI. Juventude, família, o “vírus” do clericalismo, sinodalidade, são expressões cada vez mais comuns em seu magistério. No âmbito extraeclesial, as questões ligadas à criação, à economia justa e solidária, à pobreza, à paz e ao diálogo, são apenas alguns temas que revelam um líder atento e preocupado com as grandes questões que dizem respeito a toda a humanidade. Seus documentos e pronunciamentos são um bálsamo em meio às incertezas, à intolerância e à indiferença que imperam em nosso dia a dia.

    Nesta edição da Revista Grande Sinal, trazemos algumas reflexões alicerçadas nos pronunciamentos do Papa Francisco, que podem nos indicar vias e possibilidades para uma retomada sadia nos tempos do pós-Pandemia. Frei João Fernandes Reinert apresenta-nos uma reflexão sobre o binômio “missão-descentralização” no pontificado de Francisco, a partir da expressão “Igreja em saída”. Segundo o autor, esse particular da “missão-descentralização” evidencia-se sobretudo em três áreas de atuação do magistério franciscano: na moral e na doutrina; na sinodalidade; na ecologia integral.

    A expressão “Povo de Deus”, gestada no contexto do Concílio Vaticano II, foi uma das que mais suscitou discussões e polêmicas, até hoje. A teóloga leiga Alzirinha Souza, no artigo intitulado A expressão “Povo de Deus” na prática de Francisco, propõe-nos uma interessante reflexão sobre a atualidade desse termo. A reflexão parte da leitura do Documento de Abu Dhabi (DAB), declaração que resultou do encontro do Papa Francisco com o grande imã de al-Azhar, em 2019. Segundo a autora, na Declaração é possível identificar “um ponto-chave que nos parece essencial como base, não somente para novas formas de relações da Fraternidade Universal, expressada posteriormente em Fratelli Tutti, mas também para expandir a compreensão da expressão Povo de Deus”.

    Na Encíclica Fratelli Tutti o Papa Francisco presenteou o mundo com algumas indicações muito lúcidas e pertinentes para a construção da fraternidade como elemento imprescindível nas relações. E quando ele se refere a “relações” e “fraternidade”, não está referindo-se apenas aos seres humanos, mas a um modo de ser e se colocar no mundo que diz respeito a todas as criaturas e a todo o planeta. Escrito em plena Pandemia, a Encíclica é resultado de uma profunda reflexão sobre um mundo machucado, ferido, mas ao mesmo tempo aponta vias e percursos possíveis, prenhes de esperança, onde o amor e o cuidado aos mais fragilizados estejam no centro das atenções. É o que destaca frei James Luiz Girardi, no texto intitulado Diálogo: Caminho para construir a fraternidade e a Amizade Social, a partir da Fratelli Tutti. O diálogo, ferramenta primordial na construção da fraternidade, é uma arte e, como tal, aprende-se aos poucos, precisa de tempo para amadurecer e dar frutos.

    Na parte destinada às Reflexões, trazemos um texto de Gean Carlos dos Santos, onde, alicerçado nos resultados da Conferência de Aparecida, o autor reflete sobre o tema A Igreja é nossa casa, o mundo é nossa casa comum. Uma importante contribuição catequética e litúrgica nos é oferecida, também nas Reflexões, por Guillermo Daniel Micheletti, que nos ajuda a refletir se o termo “missa” descreve com precisão o sentido da celebração eucarística.

    Frei Almir Ribeiro Guimarães nos brinda, na sessão Leitura Espiritual, com uma reflexão sobre A delicada arte de inventar a vida: tentando enxergar mais adiante.

    Agradecemos aos colaboradores deste número da Revista Grande Sinal, por partilharem conosco suas reflexões. Que as ideias, esperanças, angústias e perspectivas aqui condivididas, possam indicar vias e possibilidades pastorais, espirituais e práticas aos nossos queridos leitores. Que sobretudo, levem a despertar em nós a esperança que nos anima a seguir em frente, nestes tempos tão imprevisíveis, mas ao mesmo tempo tão instigantes. Boa leitura a todas e a todos.

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • ESPIRITUALIDADE E PASTORAL EM TEMPOS DE CRISE
    v. 75 n. 01 (2021)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

     

    Há pouco mais de um ano difundiam-se as primeiras notícias sobre o avanço do vírus que iria transformar-se na maior emergência sanitária da era moderna. As notícias preliminares mais otimistas indicavam que tudo iria se resolver em alguns meses, e, provavelmente, no máximo até o natal estaríamos todos juntos celebrando a vida com nossos familiares e amigos queridos. Depois de um ano de muito sofrimento e dor, a situação ainda não foi resolvida, e, em alguns lugares, complicou-se terrivelmente. Certamente a pobreza e a falta de recursos são agravantes na proliferação da doença e na lentidão em combatê-la. Mas, no Brasil particularmente, à falta de recursos soma-se a irresponsabilidade, a falta de empatia, o descaso com a saúde dos milhões de seres humanos, principalmente os mais pobres.

    Tratar a Pandemia como uma fatalidade, como um acaso, ou, pior ainda, como um castigo dos céus não ajuda a resolver a questão. Pelo contrário, tais comportamentos impedem que sejam trazidos à luz os reais motivos que levaram à eclosão da doença: o estilo de vida assumido pela humanidade nos últimos séculos, com a exploração desenfreada dos recursos naturais, dando origem às terríveis mudanças climáticas, a profunda divisão social, gerando uma imensa massa de deserdados, ao lado de um pequeno grupo de privilegiados que detêm a maior parte das riquezas. Por outro lado, sérias evidências científicas indicam que não vamos parar por aí. Se não mudarmos nosso modo de vida, outras pandemias virão, e a situação, que já é trágica, poderá tornar-se catastrófica.

    A emergência sanitária trouxe à tona uma verdadeira “Pandemia da alma”. A insegurança quanto ao futuro, o distanciamento social, a proximidade da morte, favoreceu o aumento de casos de depressão, de angústia, de ansiedade, de síndrome de pânico. No Brasil e nos países empobrecidos em geral, a fome e a miséria vieram tornar ainda mais cruel esta já triste realidade. Todos fomos afetados de uma forma ou de outra. Por outro lado, testemunhamos a importância do esforço conjunto na busca de soluções. Para além da necropolítica, de comportamentos negacionistas e genocidas, a humanidade foi capaz de desenvolver, em tempo recorde, vários tipos de vacinas. Aprendemos que, quando há união, solidariedade empenho e interesse na defesa da vida e na busca do bem comum, o ser humano consegue transpor os obstáculos mais difíceis. Nos vários testemunhos de misericórdia, de solidariedade e de compaixão, pudemos constatar que, apesar da “tristeza dos tempos”, ainda há esperança.

    Nestes tempos fomos obrigados a nos isolar, ficamos longe das pessoas queridas, deixamos de abraçar, fomos proibidos de demonstrar afeto e carinho através dos gestos. Deixamos de ir às igrejas. Forçados a parar, conseguimos nos comunicar à distância, criamos um novo tipo de consciência, uma nova forma de presença. Aprendemos a diminuir nossas necessidades, a viver com o mínimo necessário, ao nos darmos conta de que tantas coisas que reputávamos imprescindíveis eram na verdade supérfluas. De um certo modo, o ser humano está aprendendo a se “reinventar”. Muitas mudanças que fomos obrigados a assumir nestes tempos, vão acabar sendo incorporadas à nossa vida cotidiana no pós-Pandemia.

    Como já foi repetido tantas vezes, “sairemos dessa melhores”. Certamente essa é uma opção que toca a cada pessoa em particular. Mas, se não houver um esforço conjunto por uma verdadeira transformação, mais do que por uma simples mudança, nos arriscamos a ter que enfrentar outras pandemias piores do que a atual. A transformação passa, sem dúvida, pelas vias da verdadeira política, da economia direcionada de fato ao bem comum, pelo empenho na defesa dos direitos de cada cidadão e das criaturas. Mas tudo isso só será possível se houver uma profunda transformação do humano. Se não nos apegarmos àquilo que de fato dê sentido à nossa existência, corremos o risco de nos revoltarmos, sucumbirmos, ou de agirmos a partir da “normose”, onde o sofrimento e a dor não nos afetam mais, deixando-nos conduzir pelo descaso, pela falta de empatia, insensíveis à dor do próximo. Os mortos passam a ser apenas números, estatísticas, passam a fazer parte do cotidiano, já não nos assustam mais. Passada esta tragédia, todas as privações que nos foram impostas podem ser encaradas apenas como um terrível sacrifício, passageiro, necessário para preservar a saúde e a vida. E tudo volta a ser como era antes. Mas também podem ser assumidas como um tempo de graça, de verdadeira transfiguração, onde empenhemos o melhor de nossa humanidade para a criação de um novo modo de ser e estar no mundo, de criarmos relações fecundas, de abandonarmos nossa “zona de conforto”, e partirmos para a construção de pontes, de laços, de comunhão. Podemos passar do “ego” ao “eco”, onde a ecologia, a economia solidária, o ecossistema, sejam os novos paradigmas a indicar possibilidades criativas para a existência humana, nas suas inter-relações e nas relações com todo o universo.

    A espiritualidade pode desempenhar um papel primordial nesse processo. Trata-se, em última análise, de nos questionarmos sobre a identidade e a essência do que significa ser “humano”, diante de tanta desumanização. De nos perguntarmos sobre o lugar e o papel do ser humano no mundo, das motivações que nos impelem a seguir em frente, daquilo que nos entusiasma, dos interesses pelos quais somos capazes de apostar nossas vidas e consumir nossas melhores energias. Essas respostas só podem ser buscadas no mais íntimo de cada pessoa, a partir do mais sincero e profundo exercício de interioridade. Será uma tarefa cotidiana, onde só teremos êxito se nos deixarmos conduzir pela cortesia, pelo cuidado, pela ternura e pela compaixão: “O bem, como também o amor, a justiça e a solidariedade, não se alcançam de uma vez por todas; hão de ser conquistados a cada dia” (Fratelli Tutti, 11). Na liberdade e na autonomia, na comunhão e no esforço conjunto, seremos capazes de dizer sim à existência, de re-configurar nossas esperanças, de assumir nossa vida em nossas mãos. O momento é trágico, mas vai passar. Resta-nos perguntar como queremos viver depois disso tudo.

    A Palavra de Deus sempre foi uma importante fonte de esperança e de inspiração, nos momentos mais críticos da história da humanidade. Nesse número da Revista Grande Sinal o professor Carlos Frederico nos oferece uma interessante reflexão relacionando os escritos do evangelista João com os tempos que estamos vivendo. Como o autor afirma, o artigo se propõe a “trazer elementos que possam contribuir neste momento em que vivemos uma pandemia de Covid-19. São momentos difíceis, imprevisíveis, mas desafiantes que precisam de coragem para que possam ser enfrentados”. À luz das Sagradas Escrituras, iluminados pelos Evangelhos e pelos escritos dos primeiros anos do cristianismo, podemos encontrar “luz e guia dentro deste ambiente de escuridão e incertezas que estamos vivendo”.

    Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, partilha conosco uma instigante e oportuna reflexão acerca do papel da família, da espiritualidade e da universidade, na educação para a Ecologia Integral. Sobre a Pandemia de Covid-19, o autor afirma que, “fascinados pelos avanços tecnológicos, nos descuidamos da fraternidade e dos bens relacionais”. A Pandemia também “escancarou o absurdo da atual ideologia tecnocrática e individualista”. O confinamento a que todos fomos obrigados a nos submeter, certamente nos fizeram refletir sobre a necessidade de um “paradigma mais relacional”.

    Uma coletânea de estudos sobre o perdão, escritos por vários autores de diferentes países, com suas tradições e culturas próprias, é o objeto de um livro escrito pelo bispo Dom Vicente Ferreira e pelo professor e psicanalista René Dentz. “Horizontes de Perdão” (Editora Ideias & Letras 2020, p. 180), é o título da obra. O renomado teólogo Leonardo Boff faz a apresentação da coletânea. Além de abordar o tema com reflexões de alta qualidade e atualidade, a obra também vem ao encontro da Fratelli Tutti, do Papa Francisco, que em várias intervenções apresenta o perdão como imprescindível para a construção da fraternidade, do respeito e da paz na humanidade.

    Trazemos também neste número a segunda parte do artigo de frei Vanildo Zugno e frei Aldir Crócoli, que nos oferecem pertinentes Reflexões em torno à minoridade: de Francisco de Assis a Francisco de Roma. A minoridade franciscana é, certamente, uma pista de ação concreta nestes tempos onde a autorreferencialidade e o desprezo pelo outro nos conduziram a um beco sem saída. Publicamos também a segunda parte da reflexão da professora Moema Miranda, intitulada Laudato Si’, 5 anos: Esperança e a perigosa arte de nomear demônios. Fica cada vez mais evidente que o surgimento da Pandemia de Covid-19 está em estreita relação com a exploração desenfreada dos recursos naturais, com o descaso do meio ambiente. A Laudato Si’ continua sendo um brado profético, clamando a todos no esforço pela defesa de uma ecologia integral.

    Na parte intitulada “Reflexões”, Fr. Ivo Müller, professor de Direito Canônico no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, partilha com os leitores os resultados de um seminário realizado com seus alunos no contexto de um Congresso sobre o Sínodo da Amazônia, realizado no ITF, com a participação de vários bispos e leigos que estiveram no evento em Roma. O Sínodo debruçou-se, entre outras questões, sobre os “viri probati”, e, consequentemente, sobre o celibato. Frei Ivo e seus alunos, num texto intitulado “Aspectos teológico-jurídicos sobre o celibato sacerdotal na Igreja”, refletem sobre as várias nuances desta polêmica questão.

    Nos momentos mais sombrios da história da humanidade, a poesia e a arte sempre constituíram fonte restauradora de vida e de esperança. Fr. Wainer José de Queiroz, FMM oferece-nos uma reflexão-poema sobre a Querida Amazônia... Irmã Amazônia! Concluímos este número com a segunda parte do artigo sobre a história da Ordem das Viúvas na Igreja antiga, de frei Sandro Roberto da Costa, intitulado A Ordem das Viúvas ontem e hoje: análise histórica, evolução, conceitos.

    Fazemos votos de que as reflexões aqui apresentadas possam, sobretudo, alimentar nossa esperança, na certeza de que, a partir de nossa mais rica e profunda interioridade, e no sério empenho pela construção de uma humanidade inclusiva, solidária e fraterna, possamos superar esta terrível situação. Boa leitura a todas e todos.

    Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • LUGAR E RELEVÂNCIA DA MÍSTICA NUMA SOCIEDADE SECULAR E SECULARIZADA
    v. 74 n. 02 (2020)

    Prezado (a) leitor (a)

    Paz e Bem!

    O ano de 2020 começou promissor. Embora ouvíssemos no ar alguns “boatos” sobre um vírus que, desde fins de dezembro de 2019 estava se espalhando rapidamente pelo mundo a partir da China, a vida seguia seu ritmo. Continuamos fazendo nossos projetos, calculando os riscos para enfrentar os desafios, elaborando estratégias a partir das perspectivas de uma existência normal. Ninguém de nós imaginava que chegaríamos, em menos de dois meses, à maior emergência sanitária da história nos últimos tempos. Em poucas semanas, planos e projetos consolidados desmancharam-se no ar, milhões de vidas foram ceifadas, economias dissiparam-se de uma hora para outra. Embalados pela onda de pânico que grassou por toda parte, a Pandemia de COVID-19 revelou o que de melhor e de pior o ser humano traz em seu coração.

    Demonstrações de profundo respeito pelo próximo, gestos sinceros de solidariedade, partilha e fraternidade, vieram à tona, ao lado de expressões de desprezo pela vida, de desdém pelo diálogo, pelas instituições, pela ciência. “Sairemos melhores dessa” afirmam muitos, certamente na esperança de encontrar algum sentido para tanto sofrimento. Certamente sairemos diferentes. Melhores, talvez. Costumou-se afirmar também que “estamos todos no mesmo barco”. Talvez seja mais acertado afirmar que estamos todos no mesmo rio. O grande rio da vida, mas em barcos distintos. A grande maioria em uns pobres e frágeis barquinhos de madeira, outros agarrados a destroços, para não submergir à força das águas e da correnteza. Outros, bem poucos, confortavelmente acomodados em seus luxuosos transatlânticos.

    Na verdade, a Pandemia, como sói acontecer em momentos extremos, revelou, a muitos de nós, o que somos de fato, o que nos constituiu. Somos feitos de sonhos, embalados por ilusões, vivendo de projetos e esperanças que nem sempre se realizam. Ilusões, imagens, percepções, que se transformam em pó, diante da ameaça de um vírus, que pode pôr fim à nossa existência. Grifes luxuosas, roupas, bolsas e calçados “de marca”, festas dispendiosas, férias no exterior, tudo passou a segundo plano, em nome da defesa da própria vida. A Pandemia levou-nos a terríveis experiências de desumanização: o distanciamento social, a morte na solidão de um quarto de hospital de campanha, a dor dos que ficaram, sem poder se despedir de seus amados com um mínimo de dignidade. Por outro lado, ações e gestos tão banais e cotidianos, passaram a ter um outro valor: o abraço terno e carinhoso na pessoa querida, um encontro com os amigos num fim de tarde, um simples e sincero aperto de mãos, a liberdade de poder ir e vir sem medo de contrair o vírus. Até os sorrisos desapareceram, encobertos pelo protagonismo das máscaras.

    A Pandemia de COVID-19 veio agravar uma série de outras crises, ou até mesmo uma série de outras “pandemias”, que já fazem parte de nosso cotidiano. Talvez a mais séria, raiz e fonte de onde derivam tantas outras “crises”, é a crise do humano. Aos poucos fomos nos esquecendo que não somos imortais, que não somos indestrutíveis, nem super-heróis. Tínhamos solução para todos os desafios e problemas possíveis na face da terra, tudo medido, controlado, quantificado. Até que apareceu no horizonte um mísero vírus invisível, que nos colocou a todos de joelhos. Lembramo-nos, de repente, que somos seres humanos, feitos todos da mesma matéria, todos com um destino comum.

    Apesar dos imensos avanços da tecnologia e da ciência, e das conquistas no campo dos direitos e da dignidade humana, a ganância, a prepotência e a sede de domínio sobre tudo e todos continuam dando as cartas. Estamos trilhando um caminho sem volta. Injustiça social, miséria, fome, desemprego, gerando verdadeiras multidões de “descartáveis”, são as faces mais explícitas deste sistema. Outra face é a destruição sistemática dos biomas e ecossistemas, com os graves desastres ambientais e os fenômenos climáticos cada vez mais severos, ameaçando o futuro da humanidade e de toda a criação, em nome do lucro e do poder desmedido de uns poucos.

    Vivemos num momento de verdadeira “crise”, no sentido mais estrito da palavra. Como em todas as crises, temos a chance de sairmos dessa situação purificados. Uma purificação dolorida, mas necessária, que nos leve à mudança de mentalidade a partir de novos paradigmas, onde o que conta é justamente o humano, e tudo o que lhe diz respeito. A vacina está a caminho. Certamente vamos dominar o vírus. Mas as outras pandemias continuam. Somente a partir de um empenho coletivo, por uma transformação pessoal e comunitária, olhando para além de nossos horizontes estreitos e mesquinhos, poderemos ter alguma esperança de que algo novo possa brotar. A atenção e o desvelo para com os mais frágeis dentre nós, especialmente os pobres, as crianças, os idosos. A abertura ao diálogo e o respeito às diferenças, o cuidado com todas as criaturas e a urgente necessidade de pôr um limite à ganância humana. A emergência sanitária nos obrigou a colocarmos tanta coisa em segundo plano, e até mesmo a descobrirmos o quanto somos dependentes de coisas que, na verdade, são supérfluas. De repente descobrimos que a essência de nosso existir não se define a partir do dinheiro, do poder, do status. Do que precisamos de fato para sermos felizes?

    Este número da Revista Grande Sinal foi elaborado antes da eclosão da Pandemia. Os artigos que aqui apresentamos, no entanto, podem se somar às iniciativas de tantos que buscam refletir sobre a terrível realidade que estamos vivendo. A partir do tema, “lugar e relevância da mística numa sociedade secular e secularizada”, os autores nos conduzem pelas várias vertentes de uma espiritualidade que pode nos fazer seres humanos melhores. Se antes desta tragédia de proporções mundiais a espiritualidade e a mística já apareciam como uma importante aliada no caminho de uma re-harmonização do humano, depois da COVID-19 isto tornou-se quase um imperativo.

    O professor e pesquisador Martín Carbajo, frade franciscano espanhol, atualmente trabalhando em Roma, junto à Pontifícia Universidade Antonianum, autor de inúmeros livros e artigos, nos oferece uma reflexão a respeito da inspiração do papa Francisco na elaboração da Laudato Si’. No artigo intitulado “Místico e peregrino: Francisco de Assis, inspirador da Laudato Si’”, o autor destaca a importância da espiritualidade de Francisco de Assis na elaboração da Encíclica do papa sobre o meio ambiente. Uma mística que motiva para a ação pessoal e comunitária, sem voluntarismo, mas com uma verdadeira “paixão pelo cuidado do mundo”, como afirma o Papa no documento. Diante dos profundos desafios na vivência de uma ecologia integral, onde o humano e todas as criaturas partilhem do mesmo destino comum, fica cada vez mais evidente a necessidade de uma transformação do coração, mais do que da cabeça. A tradição intelectual franciscana, sistematizada pelos mestres como Boaventura e Alexandre de Hales, representam uma alternativa ao atual paradigma tecnocrático, que reduz tudo a objeto de análise e dissecação, com o intuito de domínio. Na Escola Franciscana, como afirma o autor, “conhecer é reconhecer, é deixar-se abrir para o mistério, é crescer em sabedoria e em capacidade de amar”. Indicações e inspirações muito oportunas e atuais.

    A professora e teóloga equatoriana María Alejandra Andrade, socióloga e especialista em cooperação internacional para o desenvolvimento, nos provoca com uma reflexão acerca da espiritualidade como um fenômeno antropológico e universal, enquanto capacidade intrínseca a todo ser humano. Como afirma a autora, aquilo que se convencionou denominar crise ambiental e crise da humanidade, na verdade são consequências da ruptura das relações com Deus, com os outros, consigo mesmo e com toda a criação. Essas relações fragmentadas deram origem ao que ela denomina uma verdadeira “desconexão cósmica”, que, em outras palavras, é uma verdadeira “crise de espiritualidade”. Chegamos a tal ponto de ruptura que somente uma “espiritualidade regenerativa” poderá permitir à humanidade estabelecer novos parâmetros de relações, que priorizem a inter-dependência, a interconexão e o cuidado, sobrepondo-se à acumulação, à ganância, à competição e ao capital.

    Reflexões em torno à minoridade: de Francisco de Assis a Francisco de Roma, é o título do artigo escrito a quatro mãos pelos freis Aldir Crócoli, frade capuchinho missionário no Haiti, e frei Vanildo Zugno, também capuchinho e professor na Estef (Escola Superior de Teologia e Estudos Franciscanos), de Porto Alegre. A minoridade é um elemento fundante do carisma franciscano. É a base e o princípio de sua experiência relacional com o Criador, com os irmãos, e com todas as criaturas. Nas atuais circunstâncias, onde a prepotência e a autorreferencialidade nos conduziram a situações extremas de desumanização, de risco aniquilação da natureza e de todas as criaturas, a reflexão a respeito da minoridade de Francisco de Assis é pertinente e atual. Guardadas as devidas diferenças de contexto, os autores buscam fazer uma relação no modo de expressar a minoriade entre os dois Franciscos: o de Assis e o de Roma. Nesta edição, trazemos a primeira parte do artigo.

    Por ocasião da comemoração dos cinco anos da publicação da Encíclica Laudato Si’, Moema Miranda, professora do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, com um destacado engajamento na discussão dos conflitos e busca de soluções para as questões ambientais, faz uma avaliação da incidência da Encíclica, os avanços, os retrocessos, as esperanças que persistem no horizonte. No artigo intitulado Laudato Si’, 5 anos: Esperança e a perigosa arte de nomear demônios, Moema vai desvelando os meandros de todo o rico aparato que possibilitou ao Papa Francisco produzir este que é certamente o mais importante documento a respeito daquilo que conhecemos como “ecologia integral”. Ao mesmo tempo abrangente e instigante, o artigo deixa no ar o odor da esperança que brota do engajamento profético pelas grandes causas. O artigo de Moema também terá continuidade no próximo número.

    Na parte intitulada “Reflexões”, trazemos a primeira parte de um artigo do Redator da Revista, frei Sandro Roberto da Costa, sobre a Ordem das Viúvas. Uma Ordem que finca suas raízes nas origens da história da Igreja, e que após o Vaticano II começou a ser redescoberta, como uma possibilidade de realização de viúvas (e possivelmente viúvos), a serviço da Igreja.

    Nestes tempos sombrios, muito se empregou a palavra “isolamento”, “distanciamento”. São expressões que traduzem uma necessidade, na tentativa de evitar a propagação de um mal que se multiplica através dos contatos humanos. No campo da mística também estas expressões costumam ser usadas, para expressar os meios de se alcançar uma maior sintonia espiritual. O professor Francisco Fresneda, da Universidade de Múrcia, na Espanha, nos ajuda a refletir sobre o itinerário da mística cristã, não como isolamento, como fechamento num egocentrismo e intimismo inócuo, mas como inserção, participação e transformação fecunda na história, a partir do exemplo do próprio Jesus de Nazaré. Como o autor questiona em seu artigo: “Por que o cristianismo não pode admitir um contraste entre a vida ativa e contemplativa? Por que tantos mestres de espiritualidade igualam oração e serviço aos pobres? A resposta será buscada a partir das Escrituras, lidas segundo a interpretação franciscana.

    Na sessão Textos Seletos, Frei Amir Ribeiro Guimarães, ex-Redator desta Revista, tece oportunos comentários sobre vários pronunciamentos do Papa Francisco nos tempos da Pandemia, reunidos numa publicação da Libreria Editirce Vaticana, intituladas “Vida após a Pandemia”.

    A experiência que todos estamos vivenciando nestes tempos difíceis certamente terá incidência sobre nosso modo de nos colocarmos no mundo. Muitos de nós descobrimos que várias das atividades “extremamente importantes” que realizávamos, na verdade podiam ser e foram, de fato, substituídas, ou até, desapareceram. Esta situação nos fez distinguir entre o que é essencial e o que é transitório, passageiro, e até supérfluo em nossas vidas. A simplicidade e a praticidade suplantaram a sofisticação desnecessária, e nos permitiram valorizar mais as coisas do espírito. A busca pelo transcendente, no entanto, não nos desobriga do compromisso no engajamento pela transformação das realidades humanas. Não são realidades opostas ou em conflito. Pelo contrário, a busca da simplicidade pode liberar espaço para que nos preenchamos daquilo que é essencial, irrenunciável e necessário: o que dá verdadeiro sentido à nossa existência e nos fortalece na luta. Os artigos deste número podem nos fornecer preciosas indicações neste caminho. Boa leitura.

     

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • ESPIRITUALIDADE E MÍSTICA NO SÉCULO XXI
    v. 74 n. 01 (2020)

    Prezado (a) leitor (a),

    Paz e Bem!

    Vivemos num mundo hiperconectado. Embora os fios e tomadas ainda façam parte de nosso cotidiano, bluetooth, wireless, cloudy (nuvens), tornam-se termos cada vez mais usuais e comuns em nossas relações e funções. Essa ausência física de fios, longe de significar um “desligamento”, ao contrário, nos conecta cada vez mais a um mundo virtual de intrincadas e espessas redes, das quais nem sempre nos damos conta, e das quais não podemos nos esquivar e nem controlar. Qualquer pessoa hoje percebe que vivemos num momento de grandes transformações. A comunicação tornou-se global. Somos o tempo todo bombardeados por informações de todos os tipos, de todas as partes do mundo, de modo tal, que não temos nem tempo de digerilas ou de assimilá-las. Celulares, computadores e tablets tornaram-se itens indis- pensáveis a uma vida dita “normal”. O antigo desejo de que as coisas pudessem ser resolvidas “num passe de mágica”, hoje torna-se realidade, quando quase tudo pode ser resolvido apenas com um toque na tela do celular ou num click do mouse do computador. Se é inegável o fato de que o avanço da tecnologia trouxe inúmeros ganhos para a humanidade, em termos de comunicação e acesso à informação, também não podemos fechar os olhos às consequências negativas de tais avanços, principalmente às camadas mais jovens da população. Ansiedade, depressão, isolamento e solidão, comportamentos antissociais, déficit de atenção, são apenas alguns dos sintomas gerados pela hiperconectividade. Sem falar no uso nocivo das redes sociais para manipular as mentes a serviço de interesses econômicos ou ideologias, como estamos presenciando através das fake news, principalmente a serviço de uma política nefasta e sem compromisso com a defesa da vida e dos direitos das pessoas e das criaturas.

    Os especialistas no assunto afirmam que estamos apenas no início de grandes transformações, que vão gerar um novo tipo de ser humano. Já se afirma que, mais do que numa época de mudanças, vivemos numa “mudança de época”. Nesse sentido, poderíamos nos perguntar: neste novo mundo que aos poucos se configura, neste novo modo do ser humano se compreender, haverá lugar para a religião, para a mística, para as questões relacionadas ao espírito? Diante da onipresença e onipotência das máquinas (sem falar da onisciência), existirá espaço para o transcendente? E, se a resposta for positiva, como se relacionar com ele? Contemplação, meditação, mística não são conceitos exclusi- vos do cristianismo. Todas as denominações religiosas oferecem meios e instrumentos que possibilitem aos seus adeptos o contato mais profundo com o transcendente. É fato inegável que, seja qual for a deno- minação religiosa que alguém siga, as transformações acima citadas trazem consequências profundas sobre o ser humano como um todo. Nesse sentido, o modo de se relacionar com o divino e com o humano, suas expectativas religiosas, a busca de sentido ou a falta dele, serão vivenciados e elaborados a partir e dentro destes novos paradigmas.

    Diante do cenário que aos poucos se descortina, com todas as suas imensas possibilidades e desafios, a redação da Revista Grande Sinal oferece a seus leitores algumas reflexões que podem ajudar a destacar alguns aspectos de uma vivência da espiritualidade para esta segunda década do século XXI.

    “Vida mística no cotidiano: os rostos de Deus” é o título do artigo que nos oferece Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum de Roma, além de outras prestigiosas instituições. O autor desenvolve ampla pesquisa na área da ética no mundo das relações virtuais. Como o próprio título explicita, o texto se propõe, à luz da exortação apostólica “Gaudete et Exsultate” do papa Francisco, a refletir sobre uma espiritualidade do dia a dia. E nessa realidade cotidiana, encontrar o rosto de Deus que se desvela das mais variadas formas. Como afirma o autor, estamos todos imersos num verdadeiro “ecossistema midiático”, num mundo hiperconectado, cheio de apelos tecnológicos e de consumo. Mas o desejo de sentido, verdade e unida- de permanecem a aspiração mais profunda do ser humano. Cultivando a capacidade de saborear o valor do silêncio e da contemplação, assumindo uma mística do cotidiano, seremos capazes de encontrar Deus nos rostos dos seres humanos e em todas as criaturas.

    Na linha da espiritualidade ecológica, Fábio Cesar Gomes faz uma profunda reflexão sobre o tema, intitulado: Itinerarium mentis in Deum: Uma proposta de espiritualidade ecológica. O Itinerarium é uma das obras mais conhecidas do franciscano São Boaventura, ilustre pensa- dor medieval do século XIII. Como o autor bem explicita, na obra de Boaventura não se encontra o termo “ecologia”, que não pertencia ao horizonte teológico-espiritual da Idade Média. Porém, detalha, “cremos que não estamos pecando de anacronismo, mas, realizando um procedimento plausível, uma vez que adotamos um método legítimo de leitura do texto, aquele hermenêutico, segundo o qual, uma vez salvaguardadas as diferenças de contextos históricos, teológicos e existenciais nos quais um texto surgiu, a intencionalidade do seu leitor pode dialogar com aquela do seu autor”. Certamente, diante da desafiadora realidade proposta pela crise ambiental, e diante das iluminadas su- gestões do papa Francisco sobre o tema, é legítimo, urgente e oportuno nos debruçarmos sobre uma “espiritualidade ecológica”.

    Uma das mais sérias crises em que estamos mergulhados nestas primeiras décadas do século XXI é a crise ecológica. As causas de tal crise são inúmeras e complexas, mas passam também pelo modo como o ser humano se relaciona com as criaturas, com os bens, com os outros. Poderíamos afirmar que, antes de ser fruto do descaso com a natureza e as criaturas, é fruto de um modo próprio de se conceber o lugar do ser humano no mundo. Em maio de 2015, o papa Francisco lançou a Carta Encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa comum. O professor Breno Herrera da Silva Coelho, ecólogo, profundamente envolvido na área da educação e preservação ambiental, nos apresenta uma sistematização desta Encíclica, a partir de quatro perspectivas centrais que a perpassam: espiritualidade franciscana, envolvimento ecumênico, crítica ao capitalismo predatório e ênfase na responsabilidade humana. Papa Francisco, na sua Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia” (53), insiste na urgência de despertarmos para o cuidado da casa comum: “Muitas vezes deixamos que a consciência se torne insensível, porque ‘a constante distração nos tira a coragem de advertir a realidade dum mundo limitado e finito’. Se nos detivermos na super- fície, pode parecer ‘que as coisas não estejam assim tão graves e que o planeta poderia subsistir ainda por muito tempo nas condições atuais. Este comportamento evasivo serve-nos para mantermos os nossos estilos de vida, de produção e consumo. É a forma como o ser humano se organiza para alimentar todos os vícios autodestrutivos: tenta não os ver, luta para não os reconhecer, adia as decisões importantes, age como se nada tivesse acontecido’”.

    Rafael van Erven Ludolf, ativista na defesa dos direitos dos animais, membro do Grupo Espírita Servidores de Jesus, nos oferece uma reflexão sobre a comunicação não violenta. Inspirando-se no encontro de Francisco de Assis com o sultão Malik al-Kamil, oitocentos anos atrás, e fazendo uma relação com as propostas da comunicação não-violenta, estruturada pelo psicólogo Marshall Rosenberg, Rafael sugere que nos empenhemos na construção de uma comunicação que “leva os seres a se entregarem de coração e a se conectarem a si mesmos e aos outros de maneira tal que permite que a compaixão natural floresça, que o diálogo para a paz e a cultura do encontro aconteça”. Certamente este é o melhor antídoto às fake news que brotam por toda parte, criando divisões, alimentando o ódio e a intolerância.

    A crise de autoridade é uma realidade constatada em todos os setores. É cada vez mais raro encontrar verdadeiros líderes, que sejam capazes de motivar e entusiasmar seus seguidores pela autoridade e exemplo de vida. Nesse sentido, Miguel Kleinhans nos oferece uma pertinente reflexão sobre a espiritualidade do serviço desinteressado, caritativo e fraterno, visando, sobretudo o bem do outro. O autor faz uma interessante análise da relação entre a autoridade, o poder e o serviço, especificamente na vida das irmãs Clarissas, de clausura. A análise das relações de poder neste peculiar e plurissecular estilo de vida, serve de inspiração para a construção de relações positivas e construtivas entre poder e autoridade em tantos outros ambientes, onde se tem como referência a busca do bem comum. Como ilustra Kleinhans: “os princípios de liderança baseados na espiritualidade francisclariana são antigos e, ao mesmo tempo, inovadores e revigorantes. O poder, para ser bem exercido, exige o sensível e delicado equilíbrio entre a ‘autoridade’ e o ‘serviço’”.

    No artigo Sinodalidade: escuta e comunhão na vida e missão da Igreja, Adenilson Tadeu Quirino se debruça sobre o tema em questão, a partir do pensamento do papa Francisco, na perspectiva da escuta  e da comunhão. Como afirma Adenilson, o Pontífice tem insistido “na importância de uma Igreja que seja capaz de sair de si mesma para ir ao encontro das pessoas, que esteja disposta a caminhar lado a lado com os homens e mulheres de nosso tempo, que se adestre na arte   da escuta, que procure estreitar laços e ser promotora de comunhão”.

    Caminhar juntos, escutar, estreitar laços, são todas expressões que remetem à urgência de relações mais humanas e humanizadoras, num tempo marcado pelo individualismo dos meios virtuais, pela fluidez das relações, quando não conseguimos nos desgrudar da tela do celular, incapazes de reconhecer o irmão que caminha ao nosso lado, ou de nos compadecermos de quem sofre perto de nós.

    “Campanha da Fraternidade 2020: Cuidar da vida, cultivando a compaixão”, é o título da reflexão de Henrique Cristiano José Matos, a partir de uma releitura do texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano. Inspirados pelo testemunho de vida de Santa Dulce dos pobres, e pela ternura e compaixão que brotam da leitura da parábola do Samaritano, somos convidados ao exercício de olhar, interiorizar, cuidar da vida, como valor definitivo e último. Só assim poderemos “reconstruir a história, aquecer o coração desesperado, iluminar quem está na escuridão, abrir os braços a quem precisa de carinho e atenção, fazer-se presente onde ninguém deseja ou quer ficar” [Texto-base, 136].

    As reflexões apresentadas neste número da Grande Sinal buscam, cada uma em sua especificidade, oferecer pistas para a vivência de uma espiritualidade encarnada em nosso tempo. São tantos e urgentes os desafios, os questionamentos, as transformações que nos sur- preendem a cada dia. Diante das mudanças, podemos ser atingidos pelo “vírus” da acomodação, ou do desespero, ou da paralisia. Mas tam- bém são muitas e imensas as possibilidades escondidas, que podem ser desveladas e trazidas à luz. O importante é o empenho de cada um na busca de respostas e possibilidades para uma vida espiritual autêntica e original, com empenho e confiança. As reflexões apresentadas nesta edição, são apenas algumas indicações, dentre tantas outras possíveis, oferecidas com carinho por nossos colaboradores. Que elas possam ser lume a indicar o caminho, para que possamos seguir em frente, com entusiasmo e audácia, sem perder a esperança. Boa leitura!

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • FRANCISCO E O SULTÃO (II): 800 anos de um encontro histórico
    v. 73 n. 02 (2019)

    Prezado (a) leitor (a) Paz e Bem!

    Neste segundo número da Revista Grande Sinal deste ano de 2019 optamos por continuar oferecendo aos leitores reflexões relacionadas ao diálogo inter-religioso, explorando ainda o rico tema do encontro de São Francisco de Assis com o sultão. A opção se justifica a partir da constatação da imensa gama de possibilidades de reflexões e interpretações que o assunto suscita ao nosso tempo. Vivemos num mundo carente de humanismo. Corremos o risco de nos deixarmos levar pela onda de intolerância, radicalismo e rispidez que parecem imperar nas relações humanas. Francisco de Assis e sua contínua “sede de humanidade”, particularmente vislumbrada no encontro com Malik al-Kamil, pode nos oferecer balizas que nos indiquem por onde caminhar em busca de tempos menos sombrios. O fato em si, da ida de um monge pobrezinho e desarmado ao encontro de um dos homens mais poderosos do Oriente, que sintetizava em si toda a violência das cruzadas, causou estupor aos seus contemporâneos. Com o passar do tempo, o evento foi sendo “reapropriado” das mais diversas maneiras, de acordo com as intenções dos que liam os fatos e os interpretavam a partir de seus interesses e opiniões. Certamente nós também não estamos isentos de fazer nossas próprias interpretações e tirar conclusões a partir do nosso contexto. Mas isso apenas confirma a riqueza de possibilidades e a importância deste encontro, para além de seu tempo.

    Os vários relatos elaborados “a posteriori” ao encontro de Francisco com o sultão mostram-no ora como mártir, ora como missionário, ou orador ou apóstolo da Igreja primitiva. Chega-se à conclusão de que “Francisco... parece estar fora dos esquemas e sua experiência cristã impossível de se encaixar nos cânones da perfeição então vigentes”. A partir desta constatação, o professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, frei Giuseppe Buffon, partilha conosco o artigo intitulado Francisco, o louco de Deus. O próprio Francisco afirmara no início de sua conversão que queria ser “um novo louco no mundo”. Quanto à missão, especialmente em relação aos “infiéis”, em que consiste essa “loucura” de Francisco? É o que responde o autor em sua exposição.

    A cortesia, o respeito ao outro, a singeleza de vida eram características marcantes da personalidade de Francisco de Assis. A violência nas batalhas entre cristãos e muçulmanos, que vivenciou pessoalmente, bem como os jogos de interesses escusos, que justificavam o massacre e o saque a qualquer preço, lhe deixaram profundas marcas na alma. Mas lhe impressionaram também a profunda religiosidade e piedade do mundo islâmico. O Padre Enio Marcos de Oliveira, no artigo intitulado Francisco de Assis, Ternura e Profecia, ou o natal em Greccio discorre sobre o impacto da experiência de Francisco na Terra Santa, que se expressou através de um gesto que marcou a história da piedade cristã: o presépio em Greccio. Segundo o autor, para Francisco “o mundo é o nosso claustro”, e “toda a terra é Santa, e Greccio é a nossa Belém”. Ora, a partir dessa perspectiva, as cruzadas deixavam de ter sentido, pois, se toda a Terra é Santa, não fazia mais sentido a guerra, o derramamento de sangue e a morte por amor aos lugares santos. Com este gesto Francisco reafirma que “a guerra, nenhuma guerra agrada a Deus, pois Jesus se fez pequeno na singeleza do presépio e assim santificou toda a terra e todos os homens e todas as mulheres”.

    No Capítulo das Esteiras de 1217, Francisco de Assis enviava os primeiros frades em missão à Terra Santa. Desde então, entre vicissitudes históricas, desafios e fidelidade à missão, os filhos do “poverello” buscam, fiéis ao espírito do fundador, e seguindo os ditames do Evangelho, ser instrumentos de diálogo, respeito e tolerância não apenas na Terra Santa, mas em todo o Oriente. Frei Jean Ajluni nos apresenta um relato histórico sobre esta presença tão significativa, mas destaca também a importância da atuação dos frades na Terra Santa hoje, ocupados em cuidar não apenas das “pedras” históricas, mas, principalmente, das pedras vivas, que são as pessoas. Nesse sentido, destaque-se a presença franciscana especialmente nas zonas de guerra, como a Síria, mas também na acolhida e cuidado dos refugiados. Como afirma o autor, “é fato admirável o trânsito que os franciscanos possuem entre os países onde realizam sua missão, e as pontes que constroem e mantêm principalmente entre a população cristã do Levante, em lugares que nem mesmo grandes organismos internacionais conseguiriam fazê-lo”. A Terra Santa também é lugar privilegiado para o estudo das origens de nossa fé, através dos centros de estudos mantidos pelos franciscanos, o Studium Biblicum Franciscanum e o Studium Theologicum Jerosolymitanum.

    A representação iconográfica do encontro de Francisco com o sultão teve grande sucesso ao longo da história. Os artistas, cada um a partir de sua especialidade e de seu contexto, procuraram expressar o modo como interpretavam o evento. O artigo de Adriano César de Oliveira, O encontro de São Francisco com o sultão Malik al-kamil: das representações pictóricas à ética da hospitalidade, propõe um itinerário de reflexão sobre o modo como a expressão pictórica pode nos interligar à espiritualidade e aos valores que pretendem expressar. Nem sempre estes dados são imediatamente perceptíveis. É preciso uma “chave de leitura” para poder adentrar nos ricos meandros que a arte encerra.

    Muitas instituições tradicionais encontram-se em crise ou transformação, incluindo-se aí a vida religiosa. Diminuem os ingressos, as comunidades envelhecem, as estruturas parecem engessar as possibilidades de renovação. Na sessão Reflexões Frei Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, nos oferece uma instigante reflexão, intitulada “Revitalizar a vida religiosa hoje: desafios éticos e Leadership”. Segundo o autor, corremos o risco de, em nome de um passado meritório e grandioso, não conseguirmos mais dar respostas pertinentes às grandes questões da atualidade, ou de fazermos pequenos ajustes, para se manter tudo como está. É preciso coragem para se transformar e se renovar, com esperança e à luz da fé. Mas para mudar é preciso também liderança. Que tipo de liderança? A vida fraterna é o caminho. Como afirma o autor, as pessoas esperam dos religiosos que sejam “expertos de relações humanas, e que suas comunidades sejam exemplo de interculturalidade harmoniosa”. Nas Reflexões trazemos também um artigo de Magaly Oberlaender, sobre a Igreja da Venerável Ordem Terceira de São Francisco do Rio de Janeiro. Uma das mais belas igrejas da “cidade maravilhosa”, mas pouco conhecida. A autora detém-se não apenas sobre a importância artística e cultural deste monumento ímpar, mas também sobre seu protagonismo na evangelização na cidade do Rio de Janeiro. Uma reflexão de frei Wagner José da Rosa, sobre O descanso litúrgico na Encíclica Laudato Si’, e a segunda parte do artigo de frei Walter de Carvalho Júnior sobre A vocação única (laical), do frade menor, fecham as Reflexões. 

    Temos em mãos, através de nossos colaboradores, muitos temas que podem qualificar nossa vida pessoal, espiritual e pastoral. Que possamos aproveitar bem dos textos oferecidos. Boa leitura!

    Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator

  • FRANCISCO E O SULTÃO: 800 anos de um encontro histórico
    v. 73 n. 01 (2019)

    Prezado (a) leitor (a) Paz e Bem!

    Em março deste ano o papa Francisco viajou aos Emirados Árabes Unidos, para encontrar-se com a minoria católica, mas também com as autoridades islâmicas que dirigem aquele país. Foi um encontro histórico, que sublinhou, entre os tantos gestos proféticos deste papa vindo “do fim do mundo”, a importância do diálogo inter-religioso. O presente que o papa deu ao príncipe herdeiro também serviu para lembrar o motivo da viagem: uma medalha, com uma representação do encontro de São Francisco com o Sultão do Egito, ocorrido em 1219. Um encontro marcado pelo respeito mútuo, pela escuta sincera e pela cortesia. Neste ano de 2019, celebramos os 800 anos deste evento memorável. A realidade que estamos vivendo, no entanto, revela um recrudescimento da intolerância e do ódio, do fechamento ao diálogo, e até o esforço pela eliminação do diferente, por motivos religiosos, raciais e culturais. Diante dessa situação, torna-se cada vez mais urgente reforçarmos iniciativas, gestos e ações que privilegiem a abertura ao diálogo, o respeito às alteridades, a cortesia nas relações humanas. O gesto de Francisco de resolver ir desarmado ao encontro do Sultão do Egito, num momento em que cristãos e muçulmanos estavam se exterminando em meio ao ódio e a violência, é um verdadeiro paradigma para a construção de relações dialogais e fraternas. Por isso a Revista Grande Sinal resolveu dar um destaque maior a esse evento, que pode nos inspirar a rever alguns de nossos conceitos, e também nos ajudar no esforço por transformar nosso modo de pensar e de agir frente às inúmeras diferenças com as quais convivemos no dia-a-dia.

    Inauguramos esta edição com um texto do Custódio da Terra Santa, Frei Francesco Patton, ofm. Nesta cidade, sagrada para as três “religiões do livro”, os franciscanos vivem, na concretude do dia a dia, o esforço de serem homens de diálogo e construtores da paz. Naquele encontro acontecido há oito séculos nas areias do Egito, os seguidores do homem de Assis encontram inspiração para viverem num ambiente de maioria muçulmana, evitando o confronto, a polêmica e a controvérsia. Como afirma frei Patton, “no momento em que retornam a ideia de contraste e a ideologia da incompatibilidade e incomunicabilidade entre diferentes culturas e religiões, o encontro de Damieta está aí para demonstrar o contrário, que somente o encontro e o diálogo produzem frutos a longo prazo”. Frei Sandro Roberto da Costa, professor de História do Cristianismo no Instituto Teológico Franciscano, nos sugere algumas pistas de reflexão a partir do contexto histórico das Cruzadas e das relações entre cristãos e muçulmanos no tempo de Francisco. Para ir ao encontro do Sultão, o poverello não se deixou levar pelo senso comum que dominava a cristandade medieval, que considerava o islã, e particularmente o Sultão, a “besta fera” a ser eliminada. Destacar o diálogo como elemento essencial da espiritualidade franciscana na inter-religiosidade, construído a partir da pluralidade de caminhos que levam a Deus, é a proposta do artigo de frei Vitório Mazzuco, mestre em espiritualidade. Como bem afirma o autor, não podemos mais pensar que “uma única tradição religiosa seja capaz de dispor sozinha da verdade única sobre Deus... cada religião é portadora de uma singularidade muito específica”. Frei Ivo Müller, Comissário da Terra Santa, partilha com os leitores algumas experiências concretas de encontro e diálogo, vividas a partir de seu contato mais próximo com a Terra Santa, e com o islã, em particular. Na sessão “textos seletos” reproduzimos a Carta do Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores, frei Michael Perry, sobre os 800 anos do Encontro de Francisco com o Sultão, dirigida a todos os franciscanos e franciscanas, mas também aos irmãos muçulmanos. Um texto profundo, que nos questiona sobre quais ações e palavras agradariam a Deus no meio do pluralismo e da complexidade do mundo de hoje.

    Na sessão denominada Reflexões, partilhamos um artigo de Dom Edson Oriolo, bispo auxiliar de Belo Horizonte. A partir da análise de vários pronunciamentos do papa Francisco, ele nos oferece uma reflexão sobre o papel do sacerdote nesta “Igreja em saída” do papa Francisco: O Ministério Sacerdotal para uma Igreja em saída seguindo o papa Francisco é o título de seu artigo. Segundo o autor, carinho, acolhimento, e compaixão de Deus são os pilares no exercício do ministério sacerdotal. O prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior faz um impressionante levantamento dos nomes de cristãos assassinados pelos regimes totalitários, canonizados ou não, que antecederam a realização da grande assembleia convocada por João XXIII, e daqueles que, durante ou após o Concílio, foram presos ou mortos, por causa da fé. Santos e Mártires do Concílio Vaticano II é o título de sua reflexão. O sangue destes homens e mulheres, verdadeiros profetas, derramado em prol da justiça, em favor dos irmãos e irmãs, e na fidelidade à vocação assumida pela causa do Evangelho, fecundou e continua a fecundar a Igreja, confirmando a expressão de Tertuliano: O sangue dos mártires é semente de novos cristãos. Frei Oton da Silva Araújo Júnior, Doutor em Teologia Moral, oferece-nos uma reflexão sobre A mística familiar de Francisco e suas implicações. Utilizando-se dos escritos franciscanos, o autor faz uma interessante análise sobre uma semântica pouco explorada na espiritualidade franciscana: a Ordem Franciscana como uma família. Com um texto intitulado A Vocação única (laical), do frade menor, frei Walter de Carvalho Júnior, irmão leigo da Ordem dos Frades Menores, nos ajuda a refletir sobre a verdadeira vocação do frade menor. Como destaca frei Walter, há uma única vocação franciscana, cuja fonte é o batismo. A vocação franciscana não está, em nada, vinculada a um estatuto clerical. Neste número apresentamos a primeira parte desta rica reflexão. Fechamos esta sessão com um artigo sobre Thomas Merton, um dos maiores místicos e mestres espirituais do século XX. Paula Regina de Oliveira Reis da Silva, aluna do curso de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, faz um estudo de sua obra O Homem Novo, onde o autor aprofunda o processo de crescimento espiritual do ser humano, a partir da doação de si mesmo.

    Este número da Grande Sinal traz algumas novidades: além do novo Redator, Frei Sandro Roberto da Costa, a partir desta edição a Revista será disponibilizada integralmente na internet (https:// grandesinal.itf.edu.br/GS). Também nossa periodicidade, a partir deste ano, será semestral. Esperamos que as reflexões propostas neste número possam nos inspirar no caminho do diálogo, no respeito a todas as pessoas e criaturas, a partir das exigências do Evangelho. Boa leitura!

    Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

    Redator