v. 77 n. 01 (2023): ESPIRITUALIDADE, EVANGELIZAÇÃO E SOCIEDADE

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Prezado (a) leitor (a)

Paz e Bem!

Nas décadas que se seguiram ao Concílio Vaticano II a Igreja testemunhou um re-despertar de seu elã profético, do anúncio da Boa Nova a partir de um engajamento efetivo nas grandes questões sociais que marcavam a sociedade na segunda metade do século XX. Os grandes dramas da humanidade, como a pobreza, a fome, o recrudescimento dos regimes autoritários, as injustiças em geral, foram temas centrais do magistério e da atuação da Igreja. Contribuiu fortemente para isso a reflexão suscitada pelos documentos do período pré-conciliar, com o Papa João XXIII (Mater et Magistra, 1961), bem como as declarações do próprio Concílio. A Encíclica Populorum Progressio (1967), de Paulo VI, também foi determinante para despertar o interesse e indicar caminhos e meios para a atuação social da comunidade eclesial.

Fiéis ao espírito da renovação conciliar, surgiram comunidades vivas, comprometidas com o Evangelho, buscando dar respostas coerentes aos inúmeros desafios de uma sociedade em profundo processo de transformação. Algumas conferências episcopais, principalmente aquelas originárias de ambientes marcados por graves mazelas sociais, também deram uma importante contribuição para a reflexão crítica acerca da missão transformadora da Igreja. As Comunidades Eclesiais de Base surgiram na esteira deste esforço de renovação, na busca por “um novo modo de ser Igreja”. A Teologia da Libertação também desempenhou um papel importante nesse processo. As Conferências de Medellín e de Puebla foram de fundamental importância para uma reflexão a partir da hierarquia, no despertar da consciência eclesial para a opção preferencial pelos pobres.

No Brasil a CNBB também teve momentos proféticos de anúncio e denúncia, como as declarações oficiais de todo o episcopado em defesa da democracia, nos tempos obscuros da ditadura, o clamor profético em favor das populações que sofriam com a fome, com a seca, com a recessão econômica. A atitude evangélica e corajosa de alguns pastores foi punida com a perseguição, com o escárnio e com o exílio. Basta citarmos aqui o franciscano D. Adriano Hipólito, D. Waldyr Calheiros e D. Hélder Câmara, entre outros.

Na verdade, a opção da Igreja por uma fé engajada, de defesa dos últimos da sociedade, começa com o próprio Jesus. No anúncio do Reino Jesus faz uma clara opção social, privilegiando os sofredores, os pobres, os pecadores, os doentes, os órfãos, as mulheres e as viúvas. O amor do Pai pela humanidade revela-se nas palavras, na atuação e na vida do homem de Nazaré. Pelo batismo o cristão assume o compromisso de colocar em prática seus ensinamentos. Mas essa prática é derivada de uma experiência pessoal, de um encontro íntimo, no âmbito da fé, com o próprio Jesus. Como afirma Papa Bento XVI: “No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (Deus Caritas est,1)”.

É essa fé autêntica, que nasce do encontro com Jesus, com sua palavra, que impele o cristão para o encontro com o irmão, que o impulsiona para uma prática baseada no amor, na misericórdia, na abertura ao outro. Ao longo de sua história a Igreja sempre foi movida por esse princípio. Animados pela força que irrompe da graça batismal e sob o impulso do Espírito de Deus, cristãos de todos os tempos se esforçaram por transformar sua fé em vida. Além de ir ao encontro dos mais necessitados, também se engajaram concretamente no combate às estruturas de pecado, envolvendo-se em movimentos em defesa da vida e dos direitos, denunciando as injustiças, assumindo compromissos no mundo da política, pelo bem comum.

Desde as origens ficou claro para a comunidade dos fiéis que não existe autêntica vida espiritual, ascese, mística, sem ação concreta em favor do próximo, sem a caridade, sem um autêntico esforço pela transformação da realidade. Contemplação, espiritualidade, ascese e ação se interpenetram, na busca pela realização do Projeto de Deus, revelado na pessoa de Jesus, de um mundo mais fraterno, justo, solidário.

Neste atual momento de nossa história, verifica-se um aumento no interesse pela busca por religião, ou, mais especificamente, um despertar para a espiritualidade, em todas as suas vertentes e nas mais variadas denominações religiosas. No entanto, em alguns meios de tradição cristã, católicos ou não, por vários fatores que não nos cabe aqui aprofundar, há alguns desvios na compreensão daquilo que poderia ser entendido por “espiritualidade” e os seus termos correlatos. Após os anos de profundo engajamento social, de luta por direitos e defesa da vida dos mais pobres e deserdados, foi-se verificando uma dicotomia entre teoria e práxis, entre a fé e a vida, entre a espiritualidade, a contemplação, e a ação concreta em prol do projeto de Jesus, do Reino de Deus.

Nos últimos anos, em função também do recrudescimento das polarizações e dos radicalismos, tornou-se até perigoso tocar em questões sociais ou políticas em alguns ambientes eclesiais. Verificamos hoje uma série de mal-entendidos, colocando em campos antagônicos a contemplação e a ação, a mística e o engajamento político, a espiritualidade e a caridade em favor dos irmãos. É como se fossem realidades independentes, contraditórias. Como já acenamos, é uma forma deturpada de entender uma realidade que faz parte da tradição da Igreja. Fruto de uma fé alienada e alienante, de uma espiritualidade desencarnada, resultado de uma formação cristã frágil e superficial. Tornou-se comum vermos pseudocristãos com a bíblia em uma mão e uma arma na outra, defendendo atitudes e comportamentos que não têm nada de cristão.

Sem nos aprofundarmos no tema, basta lembrarmos aqui que para os Padres da Igreja, a contemplação não é antagônica à ação, mas é condição prévia e indispensável. Para Orígenes (c.185-253), vida ativa e contemplativa são indissociáveis. É verdade assumida e defendida pela Igreja que uma autêntica experiência de Deus, transforma profundamente a pessoa, e, ao mesmo tempo, transforma o ambiente ao seu redor. A espiritualidade, a intimidade e a proximidade com Deus, redundam, assim, em benefício para todos. Como afirma o teólogo Clodovis Boff: “Gerando um novo ser, a experiência cristã gerará necessariamente um novo agir”. Uma espiritualidade autêntica, uma mística profunda, ancorada nos valores do Evangelho, sustentada pelos dados da tradição e do magistério, atenta aos desafios colocados pelo contexto e pela história, levam consequentemente, a uma ação transformadora da realidade. Essa é a verdadeira espiritualidade, gerada pelo Espírito de Deus, que renova todas as coisas, segundo o modelo do Evangelho.

No avançar dos anos deste complexo século XXI, o magistério do Papa Francisco talvez seja o melhor exemplo de uma espiritualidade que tenha uma incidência na vida concreta, que traga propostas efetivas de transformação da realidade, trazendo à tona uma série de temas que tocam em questões urgentes, não só para os ambientes eclesiais, mas para toda a humanidade. A sociedade líquida, marcada pelo individualismo, pela autorreferencialidade e pela falta de sentido, é sacudida pela encíclica Fratelli Tutti. A uma economia que coloca o capital acima da vida e das relações, transformando a natureza e o ser humano em objeto de consumo, de compra e venda, o Papa traz a proposta de uma economia mais humana e solidária. As graves e sérias ameaças à vida no planeta, colocando em risco a própria existência do ser humano, são uma oportunidade para o Pontífice escrever a Laudato Si’.

As intervenções “sociais” de Francisco são parte de um programa de governo, revelado na sua Encíclica Evangelii Gaudium. Ancorado nos ensinamentos da Doutrina Social da Igreja, Francisco nos convoca a uma visão global das questões que hoje afligem a humanidade. Uma de suas expressões mais importantes, “tudo está interligado”, citada na Laudato Si’, traduz a urgência de novos modelos de comportamento; da instauração de novos paradigmas de relações humanas, sociais e políticas; e de novas formas de interpretar a realidade. Na verdade, a expressão de Francisco, que, na Evangelii Gaudium propõe “uma Igreja em saída”, é um verdadeiro apelo a uma prática eclesial, religiosa, cristã, que de fato assuma, a partir da fé em Jesus, os grandes dramas que afligem toda a humanidade neste primeiro quarto do século XXI: o drama dos refugiados, a questão ambiental, a crise de sentido, as consequências da pandemia, os conflitos bélicos. Francisco denuncia veementemente a globalização da indiferença, e propõe a via do diálogo, da misericórdia, e da convivência harmoniosa, na conjugação e no respeito às diferenças.

Neste número da Revista Grande Sinal optamos por trazer algumas reflexões que possam contribuir para a compreensão de uma espiritualidade cristã que se revele a partir do compromisso com as grandes causas que afligem a humanidade. A experiência de Deus, traduzida em expressões como espiritualidade e ascese, como já acenado, são fundamentais para, a partir do Evangelho e da tradição da Igreja, iluminar as realidades concretas, possibilitando perspectivas inovadoras, que permitam uma transformação da realidade em favor da vida, da misericórdia e da paz.

Os grandes mestres da espiritualidade souberam, a partir da intimidade com Deus, agir sobre o mundo no qual estavam situados, trazendo propostas e possibilidades de renovação, reelaborando conceitos no espírito de uma “fidelidade criativa” (Perfectae Caritatis), tornando vivo e atuante o Evangelho no contexto em que viviam. Francisco de Assis foi uma dessas pessoas. Frei Celso Márcio Teixeira nos apresenta um texto sobre a atualidade da espiritualidade franciscana para hoje. Através de uma análise dos elementos que caracterizam a espiritualidade de Francisco, somos conduzidos a uma avaliação e atualização no modo do franciscanismo ser e estar no mundo, no século XXI. Como afirma o autor, “a espiritualidade franciscana é atual à medida que procura traduzir o Evangelho para a vida concreta”. Entre os elementos constitutivos da espiritualidade franciscana, frei Celso destaca a itinerância, a identificação com os pobres, o engajamento em prol da Casa Comum, a promoção da paz, contra as armas, a fraternidade universal. Como sublinha o autor, o carisma franciscano é universal, pois, apesar de circunscrito ao contexto medieval, Francisco de Assis viveu e ensinou valores que valem e perduram por séculos. Papa Francisco, em seu magistério, é a melhor prova disso.

Hoje as ruas dos centros urbanos, principalmente nas grandes cidades, tornaram-se a moradia habitual de um grande número de pessoas. Mulheres, crianças, idosos, pessoas de todas as idades amontoam-se nos bancos de praças, marquises, viadutos e calçadas, dormindo ao relento. Mais do que despertar compaixão e misericórdia, para muitas pessoas a presença dos pobres assusta, incomoda. Em alguns casos, buscam-se todos os meios para mantê-los longe, para torná-los invisíveis, para distanciá-los das pessoas ditas “normais”. Criou-se até um neologismo para expressar essa fobia, esse verdadeiro horror aos pobres: a “aporofobia”. Num instigante artigo sobre o tema, Jéssica Lima nos ajuda a entender a gênese e o significado desta expressão, que retrata esta triste realidade, que desumaniza a tantos irmãos que já vivem numa situação de desespero e abandono. Trata-se de uma verdadeira patologia social, como afirma a autora, que se expressa não só na repulsa aos pobres, mas também através de uma verdadeira “arquitetura hostil”, criando entraves para que essa população possa ter acesso ao mínimo de proteção nos espaços públicos, como os bancos de praças, espaços sob os viadutos, marquises de prédios e igrejas. As possibilidades para a superação desse desvio de comportamento humano, afirma a autora, passam pela ética do cuidado, pela educação inclusiva das novas gerações, pela luta por direitos e pela defesa da dignidade de todas as pessoas. Além do reforço do sistema democrático.

A Revista Grande Sinal publica artigos de mestres e doutores. Neste número, no entanto, abrimos uma exceção. O jovem Márcio Bernardo, que partilha conosco um artigo sobre a Economia de Francisco e Clara, foi um dos mil jovens que tiveram o privilégio de encontrar-se com o Papa Francisco, em setembro de 2022, em Assis, para participar do evento “Economia de Francisco”. Márcio atua no campo da economia, é membro da Ordem Franciscana Secular e é engajado em sua comunidade de fé. Seu texto nos apresenta os princípios daquilo que o Papa Francisco propõe, para uma economia que esteja a serviço do ser humano, e não a serviço do acúmulo do capital, e, consequentemente, da divisão e da morte. A inspiração do Pontífice para convocar este encontro na cidade de Assis, além da fé cristã, é o próprio São Francisco. Na radicalidade evangélica, fazendo-se pobre e servo dos pobres, ele indicou caminhos concretos para a renovação das estruturas eclesiais, políticas e sociais de seu tempo. No artigo, Márcio Bernardo partilha com os leitores os principais destaques deste verdadeiro movimento em prol de uma nova economia global. Também destaca a presença e a atuação do movimento no Brasil, lembrando que a delegação brasileira foi a segunda maior delegação presente ao encontro em Assis, atrás apenas da anfitriã, a Itália. O evento em Assis não foi apenas um encontro. No mundo inteiro a economia de Francisco e Clara já está acontecendo, tornando-se um verdadeiro movimento de transformação. Há um apelo e um esforço das novas gerações por criar uma economia em favor da vida, de partilha, de solidariedade, ecológica e em harmonia com todas as formas de vida.

A profecia, embora olhe para o futuro, é elaborada a partir do presente. Este é o fio condutor da reflexão do professor Carlos Frederico, exegeta, sobre a pregação social dos profetas. Inserido num dado momento histórico, social, político e econômico, animado pela experiência da fé, o profeta presta um duplo serviço: ao povo, a quem anuncia e denuncia, e a Deus, de quem é o mensageiro. O profeta, segundo a experiência bíblica, é alguém profundamente inserido na realidade popular, conhecedor da vida, das mazelas e das esperanças da população a quem serve. Mas é animado por uma profunda experiência de intimidade com Deus. Justamente por causa dessa experiência, ele consegue ver o que outros não veem, tem uma visão global e crítica da situação. Dessa forma ele pode denunciar planos escusos, interesses pessoais e subterfúgios que os outros não veem. Por isso o profeta incomoda e os poderosos tentam eliminá-lo. Mas o profeta também convoca à mudança, à transformação de vida, à conversão. Jesus é o modelo do profeta, que faz emergir sua autoridade, sua força de denúncia e anúncio a partir da intimidade com o Pai, e da vivência da realidade do povo e com o povo. A partir da análise de vários casos do profetismo bíblico, o autor traz propostas que contribuem para iluminar a realidade atual.

Ao apresentar a Encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco destacou que Francisco de Assis foi o modelo e inspirador da fraternidade universal que a encíclica propõe. O professor da Pontifícia Universidade Antonianum, Martín Carbajo Núñez, nos apresenta um artigo sobre a inspiração franciscana da Fratelli Tutti. No texto, o autor discorre sobre o modo como o jovem de Assis, em sua experiência evangélica, coloca como prioridade em sua vida as relações fraternas. O artigo expõe também as convergências entre a concepção franciscana de fraternidade e a Encíclica do Papa. No longo e trabalhoso processo de discernimento do chamado evangélico, foi ficando evidente para Francisco de Assis que o Senhor o chamava para ser Irmão Universal. Inspirada na trajetória e no carisma de Francisco, a Fratelli Tutti propõe um modelo de sociedade onde sejam superadas as polarizações, os radicalismos autorreferenciais, os conflitos entre pessoas e nações, e que seja feito um esforço coletivo, entre os homens e mulheres de boa vontade, na criação do que o Papa denomina “cultura do encontro”. O Pontífice cita o compositor e poeta brasileiro Vinícius de Morais: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida” (n. 215). Se há um homem que soube pautar sua vida pela cultura do encontro, este foi Francisco de Assis.

Neste ano a CNBB apresentou como tema da Campanha da Fraternidade a citação de Mateus 14, 16, “Dai-lhes vós mesmos de comer”. O drama da fome é uma triste e nefasta realidade no Brasil e no mundo. É das mais claras evidências do quanto a humanidade desviou-se de seu caminho de fraternidade, cuidado e compaixão. A fome não é causada pela falta de alimentos, mas pelo seu acúmulo. Esta realidade é muito clara no Brasil, onde há uma multidão que não tem o necessário para alimentar-se diariamente, num país que é um dos maiores exportadores de alimento do mundo. Frei James Girardi apresenta uma reflexão sobre o tema da Campanha, na perspectiva da dimensão social da evangelização. A Campanha da Fraternidade, a cada ano, convoca os cristãos a refletirem sobre a dimensão social e política de sua fé, sobre o engajamento, que deriva de uma fé madura, adulta, que é fruto também de uma conversão ao projeto de Jesus. O fato de a Campanha da Fraternidade ser atacada a cada ano por grupos minoritários dentro da Igreja é a prova da dificuldade de alguns cristãos de perceberem a importância da convergência entre fé e vida, entre anúncio e denúncia profética, entre celebração e ação.

Esperamos que as reflexões aqui partilhadas por nossos colaboradores possam ser de proveito aos nossos leitores e leitoras. Que possam contribuir para uma reflexão que conduza a uma espiritualidade autêntica, alicerçada nos valores do Evangelho, e que transforme a nossa vida e a vida de nossas comunidades.

 

Frei Sandro Roberto da Costa, ofm

Redator

Publicado: 2023-06-20