v. 75 n. 01 (2021): ESPIRITUALIDADE E PASTORAL EM TEMPOS DE CRISE

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Prezado (a) leitor (a)

Paz e Bem!

 

Há pouco mais de um ano difundiam-se as primeiras notícias sobre o avanço do vírus que iria transformar-se na maior emergência sanitária da era moderna. As notícias preliminares mais otimistas indicavam que tudo iria se resolver em alguns meses, e, provavelmente, no máximo até o natal estaríamos todos juntos celebrando a vida com nossos familiares e amigos queridos. Depois de um ano de muito sofrimento e dor, a situação ainda não foi resolvida, e, em alguns lugares, complicou-se terrivelmente. Certamente a pobreza e a falta de recursos são agravantes na proliferação da doença e na lentidão em combatê-la. Mas, no Brasil particularmente, à falta de recursos soma-se a irresponsabilidade, a falta de empatia, o descaso com a saúde dos milhões de seres humanos, principalmente os mais pobres.

Tratar a Pandemia como uma fatalidade, como um acaso, ou, pior ainda, como um castigo dos céus não ajuda a resolver a questão. Pelo contrário, tais comportamentos impedem que sejam trazidos à luz os reais motivos que levaram à eclosão da doença: o estilo de vida assumido pela humanidade nos últimos séculos, com a exploração desenfreada dos recursos naturais, dando origem às terríveis mudanças climáticas, a profunda divisão social, gerando uma imensa massa de deserdados, ao lado de um pequeno grupo de privilegiados que detêm a maior parte das riquezas. Por outro lado, sérias evidências científicas indicam que não vamos parar por aí. Se não mudarmos nosso modo de vida, outras pandemias virão, e a situação, que já é trágica, poderá tornar-se catastrófica.

A emergência sanitária trouxe à tona uma verdadeira “Pandemia da alma”. A insegurança quanto ao futuro, o distanciamento social, a proximidade da morte, favoreceu o aumento de casos de depressão, de angústia, de ansiedade, de síndrome de pânico. No Brasil e nos países empobrecidos em geral, a fome e a miséria vieram tornar ainda mais cruel esta já triste realidade. Todos fomos afetados de uma forma ou de outra. Por outro lado, testemunhamos a importância do esforço conjunto na busca de soluções. Para além da necropolítica, de comportamentos negacionistas e genocidas, a humanidade foi capaz de desenvolver, em tempo recorde, vários tipos de vacinas. Aprendemos que, quando há união, solidariedade empenho e interesse na defesa da vida e na busca do bem comum, o ser humano consegue transpor os obstáculos mais difíceis. Nos vários testemunhos de misericórdia, de solidariedade e de compaixão, pudemos constatar que, apesar da “tristeza dos tempos”, ainda há esperança.

Nestes tempos fomos obrigados a nos isolar, ficamos longe das pessoas queridas, deixamos de abraçar, fomos proibidos de demonstrar afeto e carinho através dos gestos. Deixamos de ir às igrejas. Forçados a parar, conseguimos nos comunicar à distância, criamos um novo tipo de consciência, uma nova forma de presença. Aprendemos a diminuir nossas necessidades, a viver com o mínimo necessário, ao nos darmos conta de que tantas coisas que reputávamos imprescindíveis eram na verdade supérfluas. De um certo modo, o ser humano está aprendendo a se “reinventar”. Muitas mudanças que fomos obrigados a assumir nestes tempos, vão acabar sendo incorporadas à nossa vida cotidiana no pós-Pandemia.

Como já foi repetido tantas vezes, “sairemos dessa melhores”. Certamente essa é uma opção que toca a cada pessoa em particular. Mas, se não houver um esforço conjunto por uma verdadeira transformação, mais do que por uma simples mudança, nos arriscamos a ter que enfrentar outras pandemias piores do que a atual. A transformação passa, sem dúvida, pelas vias da verdadeira política, da economia direcionada de fato ao bem comum, pelo empenho na defesa dos direitos de cada cidadão e das criaturas. Mas tudo isso só será possível se houver uma profunda transformação do humano. Se não nos apegarmos àquilo que de fato dê sentido à nossa existência, corremos o risco de nos revoltarmos, sucumbirmos, ou de agirmos a partir da “normose”, onde o sofrimento e a dor não nos afetam mais, deixando-nos conduzir pelo descaso, pela falta de empatia, insensíveis à dor do próximo. Os mortos passam a ser apenas números, estatísticas, passam a fazer parte do cotidiano, já não nos assustam mais. Passada esta tragédia, todas as privações que nos foram impostas podem ser encaradas apenas como um terrível sacrifício, passageiro, necessário para preservar a saúde e a vida. E tudo volta a ser como era antes. Mas também podem ser assumidas como um tempo de graça, de verdadeira transfiguração, onde empenhemos o melhor de nossa humanidade para a criação de um novo modo de ser e estar no mundo, de criarmos relações fecundas, de abandonarmos nossa “zona de conforto”, e partirmos para a construção de pontes, de laços, de comunhão. Podemos passar do “ego” ao “eco”, onde a ecologia, a economia solidária, o ecossistema, sejam os novos paradigmas a indicar possibilidades criativas para a existência humana, nas suas inter-relações e nas relações com todo o universo.

A espiritualidade pode desempenhar um papel primordial nesse processo. Trata-se, em última análise, de nos questionarmos sobre a identidade e a essência do que significa ser “humano”, diante de tanta desumanização. De nos perguntarmos sobre o lugar e o papel do ser humano no mundo, das motivações que nos impelem a seguir em frente, daquilo que nos entusiasma, dos interesses pelos quais somos capazes de apostar nossas vidas e consumir nossas melhores energias. Essas respostas só podem ser buscadas no mais íntimo de cada pessoa, a partir do mais sincero e profundo exercício de interioridade. Será uma tarefa cotidiana, onde só teremos êxito se nos deixarmos conduzir pela cortesia, pelo cuidado, pela ternura e pela compaixão: “O bem, como também o amor, a justiça e a solidariedade, não se alcançam de uma vez por todas; hão de ser conquistados a cada dia” (Fratelli Tutti, 11). Na liberdade e na autonomia, na comunhão e no esforço conjunto, seremos capazes de dizer sim à existência, de re-configurar nossas esperanças, de assumir nossa vida em nossas mãos. O momento é trágico, mas vai passar. Resta-nos perguntar como queremos viver depois disso tudo.

A Palavra de Deus sempre foi uma importante fonte de esperança e de inspiração, nos momentos mais críticos da história da humanidade. Nesse número da Revista Grande Sinal o professor Carlos Frederico nos oferece uma interessante reflexão relacionando os escritos do evangelista João com os tempos que estamos vivendo. Como o autor afirma, o artigo se propõe a “trazer elementos que possam contribuir neste momento em que vivemos uma pandemia de Covid-19. São momentos difíceis, imprevisíveis, mas desafiantes que precisam de coragem para que possam ser enfrentados”. À luz das Sagradas Escrituras, iluminados pelos Evangelhos e pelos escritos dos primeiros anos do cristianismo, podemos encontrar “luz e guia dentro deste ambiente de escuridão e incertezas que estamos vivendo”.

Martín Carbajo, professor da Pontifícia Universidade Antonianum, de Roma, partilha conosco uma instigante e oportuna reflexão acerca do papel da família, da espiritualidade e da universidade, na educação para a Ecologia Integral. Sobre a Pandemia de Covid-19, o autor afirma que, “fascinados pelos avanços tecnológicos, nos descuidamos da fraternidade e dos bens relacionais”. A Pandemia também “escancarou o absurdo da atual ideologia tecnocrática e individualista”. O confinamento a que todos fomos obrigados a nos submeter, certamente nos fizeram refletir sobre a necessidade de um “paradigma mais relacional”.

Uma coletânea de estudos sobre o perdão, escritos por vários autores de diferentes países, com suas tradições e culturas próprias, é o objeto de um livro escrito pelo bispo Dom Vicente Ferreira e pelo professor e psicanalista René Dentz. “Horizontes de Perdão” (Editora Ideias & Letras 2020, p. 180), é o título da obra. O renomado teólogo Leonardo Boff faz a apresentação da coletânea. Além de abordar o tema com reflexões de alta qualidade e atualidade, a obra também vem ao encontro da Fratelli Tutti, do Papa Francisco, que em várias intervenções apresenta o perdão como imprescindível para a construção da fraternidade, do respeito e da paz na humanidade.

Trazemos também neste número a segunda parte do artigo de frei Vanildo Zugno e frei Aldir Crócoli, que nos oferecem pertinentes Reflexões em torno à minoridade: de Francisco de Assis a Francisco de Roma. A minoridade franciscana é, certamente, uma pista de ação concreta nestes tempos onde a autorreferencialidade e o desprezo pelo outro nos conduziram a um beco sem saída. Publicamos também a segunda parte da reflexão da professora Moema Miranda, intitulada Laudato Si’, 5 anos: Esperança e a perigosa arte de nomear demônios. Fica cada vez mais evidente que o surgimento da Pandemia de Covid-19 está em estreita relação com a exploração desenfreada dos recursos naturais, com o descaso do meio ambiente. A Laudato Si’ continua sendo um brado profético, clamando a todos no esforço pela defesa de uma ecologia integral.

Na parte intitulada “Reflexões”, Fr. Ivo Müller, professor de Direito Canônico no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, partilha com os leitores os resultados de um seminário realizado com seus alunos no contexto de um Congresso sobre o Sínodo da Amazônia, realizado no ITF, com a participação de vários bispos e leigos que estiveram no evento em Roma. O Sínodo debruçou-se, entre outras questões, sobre os “viri probati”, e, consequentemente, sobre o celibato. Frei Ivo e seus alunos, num texto intitulado “Aspectos teológico-jurídicos sobre o celibato sacerdotal na Igreja”, refletem sobre as várias nuances desta polêmica questão.

Nos momentos mais sombrios da história da humanidade, a poesia e a arte sempre constituíram fonte restauradora de vida e de esperança. Fr. Wainer José de Queiroz, FMM oferece-nos uma reflexão-poema sobre a Querida Amazônia... Irmã Amazônia! Concluímos este número com a segunda parte do artigo sobre a história da Ordem das Viúvas na Igreja antiga, de frei Sandro Roberto da Costa, intitulado A Ordem das Viúvas ontem e hoje: análise histórica, evolução, conceitos.

Fazemos votos de que as reflexões aqui apresentadas possam, sobretudo, alimentar nossa esperança, na certeza de que, a partir de nossa mais rica e profunda interioridade, e no sério empenho pela construção de uma humanidade inclusiva, solidária e fraterna, possamos superar esta terrível situação. Boa leitura a todas e todos.

Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm

Redator

Publicado: 2021-05-13