v. 76 n. 02 (2022): MULHERES, SINODALIDADE E LAICATO
Prezado (a) leitor (a)
Paz e Bem!
As rápidas transformações pelas quais a humanidade tem passado nos últimos anos têm impactado profundamente o modo como as pessoas se colocam diante do mundo, dos outros, de si mesmos, com sérias consequências nas relações interpessoais, políticas, religiosas. Como bem evidencia o Papa Francisco, estamos em meio a uma verdadeira “crise antropológica e socioambiental”. A trágica experiência da Pandemia afetou a todos, deixando sequelas que vão perdurar por muito tempo. Quando alguns cogitavam que, talvez, pudéssemos sair desta terrível experiência “melhores” do que éramos, eis que diante de nós se desenrola uma guerra, que aos poucos vai envolvendo todas as nações, com consequências imprevisíveis. O conflito Rússia-Ucrânia é apenas o sintoma de uma realidade muito mais preocupante, que se revela no recrudescimento da violência, da intolerância, da xenofobia, alimentada pela ascensão dos regimes comandados por líderes fascistas, totalitários, de ultradireita, em várias partes do globo.
As tragédias climáticas acentuam-se e tornam-se mais graves a cada ano, causando destruição e morte. A possibilidade de um cataclisma ambiental de proporções globais faz-se cada vez mais real. Apesar de tudo, muito pouco de concreto se faz. Percebe-se que há muitos interesses em jogo, e que ninguém está disposto a mudar de fato um estilo de vida que beneficia a poucos, que se assenta em grande parte na dilapidação do meio ambiente, em relações injustas, na ganância, mesmo ao alto preço de colocar em risco a existência do planeta.
No Brasil, nos últimos anos, para além da Pandemia, particularmente as classes mais empobrecidas e fragilizadas continuaram sendo as principais vítimas do descaso dos governantes. O drama da fome atingiu mais de 33 milhões de pessoas. As mulheres, os idosos e as crianças foram os que mais sofreram. A necropolítica avançou, propondo e aprovando leis que atentam contra a vida e colocam em risco a segurança de todos, como a facilitação na liberação do porte de armas aos civis, o desmonte do sistema de inclusão e de proteção social, entre outros. O desemprego atingiu índices altíssimos. Negros, quilombolas, mulheres, indígenas, população LGBTQIA+ tiveram seus direitos negados. Nas políticas e projetos do Governo imperaram o negacionismo e o ataque às ciências, às universidades e à cultura em geral; a destruição desenfreada dos biomas, florestas, rios, animais, em prol dos interesses de poucos.
A religião, como parte integrante da sociedade, não poderia passar ilesa nesta insana situação. Na sociedade pós-moderna, em que campeia o secularismo, com um número cada vez maior de pessoas “sem religião”, na qual se alardeia aos quatro ventos “o fim das religiões”, em se tratando de eleições, nunca o nome de Deus foi tão evocado. Cristãos, ou supostos cristãos, apareceram, em nome da fé, defendendo propostas nefastas, fazendo apologia à tortura, atacando a CNBB, os bispos e até o Papa Francisco. Numa verdadeira guerra santa, igrejas, eventos religiosos, padres e pastores, foram promotores da desinformação, da disseminação de fake news, sob o pretexto da defesa da família tradicional, dos bons costumes, contra o comunismo, o aborto, a ideologia de gênero, etc. Até satanás foi evocado como cabo eleitoral. Ao invés de nos tornar pessoas melhores, a religião tem sido instrumentalizada para reforçar preconceitos, para disseminar o medo e o ódio, fortalecer a alienação, para separar e criar muros, no lugar de criar laços e gerar comunhão. Como afirmava Jonathan Swift, “Nós temos a religião suficiente para nos odiarmos, mas não para nos amarmos uns aos outros”.
O resultado do primeiro turno das eleições de 2022 revelou um Brasil flertando com a extrema direita. Mas deixou evidente também uma realidade muito mais complexa e desafiadora. Constatou-se que, em algumas localidades praticamente abandonadas pelo poder público, onde impera a criminalidade, a pobreza, o desemprego, mas onde as igrejas evangélicas são onipresentes, os candidatos mais conservadores e de extrema direita foram os mais votados. Foram alçados ao poder homens e mulheres com um conhecido histórico de ataque aos direitos humanos, de corrupção, de conchavo com garimpeiros e madeireiros, sem escrúpulos e sem nenhum compromisso com as minorias e os pobres, e muito menos com a moral e os bons costumes que tanto alardeiam. Por sua vez, os discursos dos candidatos que se comprometeram com a defesa de direitos, que acenaram com a possibilidade de mudança da realidade através do voto, da democracia e da atuação política, foram inócuos. Constatou-se, talvez tarde demais, a força do discurso religioso tradicional, manipulado de modo hábil pelos setores mais conservadores, em detrimento da política em favor do bem comum e da ética verdadeiramente evangélica. Mais do que anúncio do amor e da misericórdia, da compaixão e do cuidado, pregados e vivenciados por Jesus, o fundamentalismo religioso, muito bem manipulado por cristãos reacionários, evangélicos ou setores católicos tradicionalistas, foi o grande protagonista.
A extrema direita tupiniquim soube se valer muito bem dos valores religiosos da população e do conservadorismo para camuflar seus interesses. Mas o caso do Brasil não é isolado. O mesmo ocorreu e continua a ocorrer na Hungria, na Polônia, nos Estados Unidos e outros países. Recentemente na Itália assumiu o poder a Primeira Ministra neofascista Georgia Melloni, herdeira de Mussolini, eleita alardeando ser a candidata ideal, por ser “mãe, mulher e cristã”.
Tal constatação não deve nos fazer desacreditar da religião como força de transformação. Esta, como o pleito eleitoral deixou evidente, continua a ser um importante elemento, que dá sentido e alento à vida das pessoas, principalmente aos mais pobres, abandonados pelo Estado, deixados à própria sorte, talvez desiludidos com o sistema político tradicional. Mas esta força deve ser trabalhada e direcionada na luta por direitos, no esforço por transformar a realidade. Como acenamos, é uma realidade muito complexa, e só uma análise séria e profunda poderá trazer algumas respostas. O Evangelho nos desafia sempre, pois exige um olhar atento à existência, a partir de uma hermenêutica que ilumine a realidade e a transforme, baseados na vivência dos princípios do Reino. Os últimos acontecimentos na política nacional mostraram o quanto a Palavra pode ser manipulada, deturpada, distorcida em função de interesses perversos e desumanos.
Contrastando com essa situação execrável, por sorte encontramos ainda muitas pessoas de bom senso, movidas pela ética e pelos verdadeiros valores humanos, que não aceitam este discurso. Seja no mundo da cultura, no mundo da política, nas Igrejas cristãs, nos meios intelectuais, ou mesmo em meio às pessoas mais simples, brotam sementes de oposição aos projetos de morte. O Papa Francisco se destaca neste cenário, com sua voz firme e forte condenando todas as formas de intolerância, desrespeito à vida e à dignidade, a destruição do meio ambiente, propondo uma nova forma de pensar e agir em relação às mais importantes e urgentes realidades humanas. Seus pronunciamentos, oficiais ou não, vão na linha do diálogo, da fraternidade, do fortalecimento dos laços entre todas as pessoas. A Sinodalidade perpassa todo seu pontificado.
Nesta edição da Revista Grande Sinal optamos por refletir a respeito da Sinodalidade a partir do ponto de vista das mulheres. Embora haja consensos na compreensão de expressões e conceitos teológicos, certamente há nuances próprias, que só a partir de um determinado lugar teológico podem ser tematizadas e trazidas à tona. Por isso queremos, neste número, ouvir o que as teólogas têm a dizer a respeito da Sinodalidade. Certamente o tema toca em questões sensíveis, como o poder, o patriarcado eclesiástico, o clericalismo, o machismo, a luta pelo protagonismo de leigos e leigas.
Este número se abre com um artigo que discute o laicato na perspectiva do processo sinodal. A autora, a teóloga Alzirinha Souza, nos provoca a refletir, não apenas sobre o laicato, mas sobre o clericalismo, verdadeira “praga na Igreja”, denunciada insistentemente pelo Papa Francisco. Numa Igreja marcada pelo suposto protagonismo masculino, o clericalismo é muito mais nocivo e menos evangélico quando atinge as mulheres. Como afirma, é necessário refletir de modo mais profundo, de forma a pensar as “demandas próprias do laicato a partir daquilo que ele efetivamente é e em qual(ais) espaço(s) específico(s) elas podem colaborar com a tessitura da sinodalidade na Igreja”. É urgente mudar a “cultura clerical” vigente na Igreja, para uma “cultura de comunidade que se compreenda como um todo, como uma unidade que caminha em diálogo e escuta a partir e em torno da pessoa de Jesus”.
O fundamento da Sinodalidade, já desde as origens da Igreja, foi sendo aos poucos subvertido, em função de uma estrutura patriarcal, autoritária e verticalista. É sobre isso que discorre o artigo da professora Eva Aparecida Resende. Partindo dos fundamentos históricos e bíblicos, a autora faz um percurso até a atualidade. Na atuação do magistério, marcadamente a partir de meados do século XX, a importância da contribuição das mulheres foi sendo cada vez mais afirmada. Mas, principalmente após a “volta à grande disciplina”, a partir dos anos 1990, houve um avanço muito tímido no reconhecimento da importância da atuação das mulheres na Igreja, nos movimentos, pastorais, paróquias. A situação é mais grave em se tratando da participação das mulheres nas instâncias de decisão da Igreja, nos institutos de Teologia, como discentes e docentes. Papa Francisco tem dado sinais claros de que esta realidade não condiz com o Projeto de Jesus para a Igreja no mundo, e tem tomado medidas concretas para mudar, aos poucos essa situação.
Ao longo da história, as mulheres, por mais que tenham sido relegadas à “invisibilidade”, desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento da Igreja. Algumas, mesmo condicionadas pelo contexto em que viviam, conseguiram dar uma contribuição específica, e se destacaram, a ponto de terem sua importância reconhecida ao longo da história. A professora Lícia Pereira, doutora em Espiritualidade pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, nos apresenta algumas destas mulheres, que, por sua contribuição à Igreja e ao projeto de Jesus, foram inseridas no rol das “doutoras da Igreja”. Certamente não podemos, no contexto em que essas mulheres atuaram, nos referir à Sinodalidade como nos referimos na atualidade. Mas, como afirma a autora, “cada uma no próprio contexto cultural e eclesial, de acordo com a própria personalidade, vocação e missão, viveu plenamente o seu significado”.
A necessidade de se repensar a evangelização a partir das culturas, levando em consideração a piedade popular, tendo como alicerce a Sinodalidade, é o tema do artigo da professora Vera Maria Boing. Nesse processo, a presença de Maria ocupa um lugar de destaque, como modelo de fé comunitária, ativa e participativa, movida pela solidariedade e pelo serviço. Como afirma a autora, “Maria, mulher, Mãe de Deus, Mãe da Igreja, carrega a força de gerar uma nova evangelização, de sustentar e fortalecer uma comunidade eclesial sinodal”. Maria é referência do serviço, da humildade, da escuta, do diálogo e da conversão a um modelo eclesial “onde todos sintam-se acolhidos e incluídos como parte do povo de Deus”.
Apesar da fome ser um espectro que ainda ronda boa parte da humanidade, incluindo o Brasil, estamos chegamos num momento da história no qual, em muitos países, mais pessoas morrem por doenças relacionadas à superalimentação, como diabetes, obesidade, hipertensão, do que de fome. A professora e doutora Aleluia Heringer, no seu artigo intitulado “Para se alimentar basta a terra!”, nos convida a refletirmos sobre a forma como nos alimentamos. Comer, muito mais do que uma necessidade física, remete à metáfora da comunhão, simbolizada no convívio, no estar juntos, na comensalidade. A atual crise ecoambiental exige de nós repensarmos nossos paradigmas alimentares, nossas relações com a natureza, com os animais. É um ato de responsabilidade, primeiro com a nossa própria saúde, mas também de cuidado com o planeta. Somos convidados a pensarmos “para além do cardápio”.
Uma das mulheres mais conhecidas das Sagradas Escrituras, mas ao mesmo tempo mais injustiçada é Maria Madalena. A partir do comentário dos Apócrifos, Frei Jacir de Freitas Faria, especialista no tema, nos ajuda a retirar as “poeiras do tempo”, que aos poucos esconderam o protagonismo e importância dessa mulher para a Igreja das origens. Em se tratando de uma publicação em que as mulheres têm o protagonismo, nada mais justo do que resgatarmos o papel central desta mulher na Igreja, líder entre os apóstolos, testemunha da ressurreição, inspiradora das mulheres no esforço por uma sociedade e uma Igreja mais igualitária.
Nas origens da Igreja, só havia leigos e leigas. Não havia templos, não havia estátuas ou imagens, nem sacerdotes ou sacrifícios de animais, nem vestes diferentes para os ministros, nem altar. Os cristãos da comunidade nascente não precisavam destes aparatos para celebrar sua fé no ressuscitado e para colocar em prática o projeto do Reino. Além de buscarem se distanciar dos cultos pagãos e do judaísmo. O desenvolvimento da Igreja ao longo da história e sua expansão no mundo greco-romano, exigiram que alguns destes elementos fossem, aos poucos, incorporados ao culto e à liturgia. Mas a hierarquização, a ascensão do clero e sua imersão nas complexas instâncias do poder eclesiástico, foram se reforçando a partir da aproximação da Igreja com as instâncias do império. A Igreja constantiniana colocou leigos e leigas em situação subalterna em relação ao clero. Desde então, somamos mais de 1.700 anos de caminhada de um modelo eclesial clericalista, patriarcal, hierárquico e excludente.
Nas últimas décadas, com o início da derrocada do modelo constantiniano de Igreja, os leigos começaram a fazer-se ouvir. Mas ainda há uma longa estrada a ser percorrida. Não obstante todo o esforço do Papa Francisco na linha da Sinodalidade, sabemos que há resistências. Mentalidades e ideias arraigadas, comportamentos e modos de pensar e agir visceralmente incrustrados durante milênios na mente das pessoas e das instituições, relações de poder e de privilégios, por mais sagradas que possam parecer, não são transformadas em poucos anos. Como vimos na realidade das eleições no Brasil, nem sempre a religião, as estruturas, o culto, servem ao Evangelho, à vida plena, ao projeto de Jesus. Ao propor o caminho da Sinodalidade, o Bispo de Roma convida a todos, leigos e leigas, membros do clero, cristãos católicos e não, mulheres e homens de boa vontade, a caminhar juntos, a se abrirem ao diálogo e à escuta mútua, ouvindo as vozes que podem nos indicar novos e criativos meios de vivenciar o Evangelho, num processo no qual impere a comunhão e a partilha. Mais do que um processo de mudança, trata-se de uma verdadeira “conversão”. É um processo que se dá “caminhando”, em que cada um e cada uma pode e deve dar sua contribuição, indicando as virtudes e as fragilidades da Igreja, suas forças e suas debilidades, numa crítica construtiva, honesta, a um sistema plurissecular que precisa ser revisto, transformado, em prol da vida e do bem de todos.
Fr. Sandro Roberto da Costa, ofm
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